Fundamentos filosóficos para a Nova Direita (parte 1 de 4)
Viajante sobre um Mar de Nevoeiro, Caspar David Friedrich, 1818
(Texto, com anotações posteriores, da alocução de Robert Steuckers na Universidade de Verão do G.R.E.C.E. de 1992. Via Euro-Synergies)
Propor uma ruptura com os paradigmas ocidentais
A primeira questão que se deve colocar hoje a qualquer pessoa interessada pelo universo da Nova Direita na Europa é saber por que razão este movimento causou escândalo, suscitou tantas reacções negativas nos círculos do pensamento convencional? Para dar, primeiramente, uma resposta simples a esta questão vasta, direi que a ND propunha, de imediato, uma ruptura dos paradigmas ocidentais. A ND, com efeito, como muitos outros movimentos filosóficos ou correntes de pensamento, é essencialmente fracturante. Afirma um mundo, um relato (da história dos povos), diferente daquele que domina a cena política ou cultural. Ela vira as costas à mania da crítica pela crítica, da crítica como instrumento para aperfeiçoar pequenas correcções marginais, de engenharia social, sem interpelação radical e global do que está decididamente estabelecido e sufoca, oprime e oblitera as potencialidades fecundas que não esperam mais que uma coisa: manifestar-se. Como, no âmbito da ND, se articulou esta ruptura? Articulou-se sob dois planos: a) o plano da oposição orgânico/mecânico; b) o plano religioso, pela sua rejeição global da mensagem cristã.
A- A ruptura com a ideologia mecanicista dominante
As ideologias dominantes no mundo ocidental em geral e na França em particular derivam, na sua maioria, de opções mecanicistas do pensamento, afirmadas nos séculos XVII e XVIII. Toda a opção orgânica, em política ou em economia, está sob suspeita, implica a desconfiança, a hostilidade, não é levada a sério. Desde o fim do século XVIII, alguns pensadores políticos, como o inglês Edmund Burke, percebem o grande risco que constitui a adopção acrítica , na prática política quotidiana, de modelos exclusivamente mecânicos. Os povos, como as árvores, são entidades vivas, não são relógios. Não podemos gerir uma entidade política nascida da História intervindo no seu funcionamento como se ela fosse uma máquina composta por rodas e cavilhas. Os “produtos da natureza”, como o homem e os seus modos de vida, são sempre, simultaneamente, causa e efeito deles mesmos (Ursache und Wirkung), as leis que presidem ao seu desenvolvimento no tempo e no espaço residem no fundo deles mesmos, na sua própria interioridade. Já os “produtos de arte”, os produtos saídos do “espírito de fabricação”( Joseph de Maistre) vêm os seus movimentos impulsionados por um agente exterior, que, pela força das coisas, os tem arbitrariamente debaixo da sua alçada.
A ideologia dominante hoje em dia, nestes últimos decénios, sobretudo em França, inspira-se no mecanicismo e é, em derradeira instância, coerciva e correctora, apesar dos discursos morais ou “democráticos” que não deixa de pronunciar. Se o agente exterior desaparece, o movimento da máquina, do “produto de arte”( Kant, Kritik der Urteilskraft,1790) pára imediatamente. A ideologia dominante baseia-se então sobre a alternativa: ou a coerção ou a morte. Ao recusar as ideologias mecanicistas, ao recordar os laços orgânicos do homem e ao fazer referência à obra do prémio Nobel Konrad Lorenz( entre outros autores), a ND denunciava implicitamente, talvez mesmo sem saber, a presença controladora de todo o “agente exterior”( no caso as oligarquias e as elites que, elas próprias, se excluíram do povo) e, ipso facto, denunciava a sua impostura. Grave heresia no universo político jacobino. Do golpe, o fundamento motriz da ideologia dominante arriscava desaparecer [Adenda de 1998: A ND evocou constantemente Konrad Lorenz, falou à saciedade da sua crítica do igualitarismo e repetiu a sua descrição da agressividade, mas escusando-se curiosamente de analisar em profundidade a sua tese sobre Kant, fundamental para perceber a sua antropologia filosófica posterior. Gusdorf escreve com pertinência que Kant é também o primeiro dos pós-kantianos, o primeiro a indicar a porta de saída dos encerramentos euclidianos do iluminismo e do newtonismo vulgar, interditando-se pessoalmente de percorrer esse caminho: depois dele, Schelling e Von Humboldt voltar-se-ão para a interioridade, viva, bem presente, dos homens e das coisas, mas dissimulada sob a sua superfície].
O filão romântico e orgânico
No seguimento de 1) as primeiras reflexões de Kant sobre o “Organismus” e os “produtos da natureza”, depois 2) do Sturm und Drang literário e 3) das críticas políticas mais ou menos conservadoras dirigidas à França Revolucionária; o pensamento romântico alemão toma o seu rumo. Neste corpus disperso mas magistralmente analisado por George Gusdorf, reside uma formidável ruptura face à antropologia iluminista. Esta pretendia colocar o agir humano na dimensão única da axiomática racional, enquanto a revolução romântica mergulhava o indivíduo ou as individualidades colectivas, as especificidades nascidas no tempo e no espaço, numa pluralidade de dimensões, submergia-as na natureza, a sociedade na comunidade carnal das suas origens( históricas, culturais ou biológicas). Um homem, mergulhado assim na intensidade e no imediatismo do vivido não é controlável pelos “agentes exteriores”( executivos arbitrários, polícias políticas, oligarquias de todas as ordens, manipuladores mediáticos, etc); ele escapa à sua vigilância, ri-se das suas baixezas e dos seus esquemas, ridiculariza a sua severidade. Ele furta-se a toda a homogeneização comportamental. A sua essência não reside num modelo abstracto mas na unicidade das suas experiências espaciais e temporais, inalienáveis e intransmissíveis. O homem do romantismo não é reduzível a um esquema abstracto, não está despojado da autoridade das suas substâncias, adquiridas na confrontação quotidiana com o real ou herdadas de uma linhagem. O homem romântico, precisa Gusdorf, está em harmonia com o universo. O racionalismo das luzes é aridez enquanto que o romantismo, com Carl Gustav Carus, é “antropocosmomorfismo”, em que o homem, com o seu corpo e os seus sentidos, torna-se órgão activo do “Organismo Total” que é a natureza. Este homem não pode ser desligado do Todo que é a Terra. Ele é um seu órgão.
Deste “antropocosmomorfismo” deriva o que a história das ideias chamará sucessivamente a “revolução alemã” ou a “revolução conservadora”, que lhe são avatares posteriores, tal como hoje em dia a Nova Direita deveria posicionar-se claramente e sem ambiguidades como herdeira deste filão, num contexto já não puramente alemão, mas num contexto europeu e mundial. O romantismo induz um saber romântico da natureza mas também do homem, da Cidade e do político, que tomarão, à vez, os aspectos da filosofia da natureza de Schelling, da biosophia (Troxler) ou da geosophia (Carus), do pan-vitalismo( Stahl, escola francesa de Montpellier), do monismo animista (Fechner, mestre de Ernst Jünger),etc. Revolução romântica, alemã ou conservadora, pouco importa o nome, este filão do pensamento europeu é aquele que privilegia as particularidades, não lhes dá nunca um estatuto subalterno, não visa a sua erradicação, e peregrina, respeitosamente, rumo à sua identidade interior, secreta. Em boa lógica, uma ND defensora das identidades( ou das especificidades concretas, reais e carnais, que recupere esta palavra um pouco infeliz) deveria imergir-se inteiramente neste filão, trabalhar para o defender e para o ilustrar, reactivando-o e transformando-o num instrumento de combate permanente contra as esterilidades de uma ideologia saída do iluminismo, que pretende trazer-nos a liberdade e a emancipação mas que não é nada mais que mortífera.
Impraticabilidade do cosmopolitismo
Na libertação progressiva do pensamento alemão do século XIX do espartilho do Aufklärung [NdT:iluminismo], incapaz de representar todas as facetas da realidade, a eclosão da filosofia da vida desempenha um papel de primeiro plano. A partir das inumeráveis intuições geniais, mas expressadas de forma solta, do romantismo, constrói-se progressivamente uma abordagem mais orgânica e diversificada do mundo e do real, em reacção contra os avatares do Aufklärung. Esta abordagem tem, entre outras, a apelação “filosofia da vida”(lebensphilosophie). É uma reacção contra a primeira síntese do século XIX, esse misto de idealismo alemão, liberalismo burguês, ideal da liberdade pessoal, da cultura geral ou particular das pessoas concretas, de estatismo, que era suposto convergir num quadro cosmopolita( notemos que este quadro cosmopolita regressou ao primeiro plano hoje em dia e é reivindicado ruidosamente, com veemência, por uma série de doxógrafos, cuja função é policial e inquisitória).
É justamente este ideal de cosmopolitismo que constitui o ponto fraco desta primeira síntese do século XIX. Os percursores da filosofia da vida constatam a impossibilidade de abarcar de forma ideal todos os parâmetros do mundo. O “eu”, constatam, está limitado no tempo e no espaço, ainda que a sua acção se possa exprimir de inumeráveis maneiras neste quadro espaço-temporal. Tal é o destino do homem: não pode agir senão numa única vida e, de modo constante e não furtivo, fugaz, efémero, num só lugar, aquele onde vive. O quadro onde se exprimem as obras inumeráveis do homem é um quadro circunscrito: o de uma nação, de um Reich, de uma etnia, etc. A nação alemã, o Reich bismarckiano, o território histórico (ducado, terra de igreja, cidade imperial, etc.) incluídos neste império são, para os neo-idealistas alemães do século XIX, quadros limitados, certamente, mas são também factos da vida e, a esse título, são incontornáveis. Ali, naqueles quadros, e somente ali, podem concretizar-se as visões do idealismo e não numa qualquer cosmopolis.