EU!EU!EU!
Uma das características mais estranhas, e das mais insuportáveis, da psicologia moderna é talvez a completa confusão entre «ter personalidade» e «exprimir egoísmo e egocentrismo».
Com efeito, hoje, tudo o que possa assemelhar-se a altruísmo, humildade, entrega, abnegação discreta, reconhecimento ou admiração silenciosa é visto como, horresco referens, fraqueza! «submissão». E como todos sabem, toda a «submissão» é indigna e infame, não só quando é imposta mas também quando é escolhida…abjecta pela sua própria natureza, que pretende que o indivíduo reconheça não ser a criatura mais excepcional do universo, semi-deus formidável «que se basta a si mesmo», mas um simples herdeiro de quem serviu, reconhecido ao passado, às suas formas, princípios e valores e, porque não, às personalidades superiores que lhe preenchem os dias.
Doravante, fora de si mesmo, não há salvação! Para existir e brilhar socialmente é conveniente dar nas vistas e fazer barulho afim de se impor no grande carnaval das relações humanas! Qualquer que seja o preço!
É chegado o tempo do homem-sirene!
Para captar um pouco de atenção dessa massa imunda e débil a que chamam «as gentes», é preciso fazer-se notar por todos os meios possíveis, os mais vis, sendo, evidentemente, privilegiados. Torna-se assim vital «distinguir-se», cuspindo na cara do mundo o pequeno escarro da sua «diferença» e «originalidade», evidentemente fictícias, mas que existirão artificialmente durante alguns instantes pelos lamentáveis métodos da «contradição sistemática», do «contra-golpe mecânico» ou da «provocação estéril».
Esta tendência está notoriamente presente no funcionamento quotidiano de uma variedade de pretensos casais em que os membros, em aparente concorrência permanente, não parecem ter outro objectivo do que exibir aos olhos dos outros não o que os aproxima e une mas, pelo contrário, o que os diferencia e separa, cada um querendo provar a todo o custo que a sua formidável (e única!) personalidade não foi minimamente obliterada pela vida em comum. Daí a grotesca e infindável competição a que se entregam estes pares de egoístas, receosos de solidão, que não serão nunca verdadeiros casais. Nada lhes está mais perto do coração do que fazer demonstração da sua suposta «independência» e da sua posição «dominante» no «funcionamento relacional» a que se resume a sua junção mais ou menos efémera.
Assim, as disputas perpétuas, os desacordos públicos e as sempiternas contradições tornaram-se, pouco a pouco, provas de «sanidade», de «vitalidade» e de um «carácter apaixonado», de uma relação conjugal que liga «duas personalidades fortes», quando na verdade não passam de tristes e lastimáveis prolegómenos da derrota inelutável de dois cretinos cheios de egoísmo e pretensão, incapazes de sacrificar a mínima parte dos seus egos hiperatrofiados para criar algo maior e mais digno que a soma das suas duas mediocridades.
Sobretudo não «amar», «servir», «encorajar», «ajudar», «apoiar» ou «seguir» simplesmente o seu cônjuge, mas antes «reajustá-lo», «colocá-lo no seu lugar», «vigiá-lo», «criticá-lo» ou «gozá-lo» (gentilmente, claro! A modernidade está cheia de gente gentil!), para bem demonstrar «que não somos tolos!» e «que não nos deixamos enganar» nem «possuir».
Com as uniões dessacralizadas e tornadas vulgares contratos de tipo liberal, é natural, no fundo, que as relações que daí resultam sejam reduzidas às patéticas gesticulações de um negociador de ocasião que, apavorado pela ideia de passar por ingénuo ou tonto, expõe ele próprio, para se adiantar aos outros, os defeitos e disfuncionalidades do objecto da sua escolha.