Month: Maio, 2007

InterRail, destino: Bruxelas

A Bélgica começou a sofrer a grande vaga contemporânea de imigração a partir, sobretudo, da década de 60 do século que findou, acompanhando uma tendência que foi generalizada aos países daquela parte da Europa. Hoje, quase 50 anos volvidos, a Bélgica pode orgulhar-se de ser um brilhante serviçal das doutrinas socialistas, liberais, “humanitaristas” e modernizantes que o “progresso” e a nova ordem global delinearam. A prova de que o combate das luzes da modernidade progressista contra a obscuridade reaccionária tem sido um retumbante sucesso é hoje a capital do país: Bruxelas.

Com efeito, em Bruxelas, hoje, a maioria da população, 56,5%, é de origem estrangeira e algumas estimativas apontam para que esse número atinja os 75% daqui a cerca de 10 anos( talvez com um pouco de sorte e ambição, continuando o bom trabalho realizado até agora, haja esperança de que daqui a 20 anos não sobrem belgas na capital da Bélgica…coragem, só mais um esforço). Tal é resultado do ritmo imposto pela imigração que se abate sobre o país e a Europa bem como das alterações à lei da nacionalidade rumo ao ius solis, o mesmo critério que saiu reforçado na nova lei da nacionalidade aprovada no nosso país (embora ainda não tão gravosa como a existente na Bélgica).(1)

Contra esta bizarria, para fazer frente à generalização deste cenário surreal, ergueu-se uma frente nacionalista, o Vlaams Belang, e contra o Vlaams Belang uniram-se todas as forças políticas, a tal ponto que o partido, mesmo sendo o maior do país, se vê impossibilitado de exercer influência maior, é confrontado com coligações que vão da extrema-esquerda à direita conservadora e que impedem o exercício do poder pelos nacionalistas. Mas essas coligações, generosamente apelidadas de cordões sanitários, como se grande parte da população belga fosse lixo, e que, no mínimo, levantam já por si só questões graves sobre a moral democrática, não são senão uma amostra da degeneração política em vigor nos regimes europeus, onde vale quase tudo para parar as forças de resistência ao novo ordenamento mundial e fazer avançar o processo de transmutação europeu em direcção a algo que nada tem que ver com as raízes do continente.

Merecem agora destaque, porque convém assinalar estas coisas para efeitos de memória, mais duas investidas recentes contra o partido (depois da ilegalização que forçou à mudança de nome e do corte no financiamento estatal que tentou estrangular o agrupamento nacionalista). Não as abordaremos por ordem cronológica porque deixaremos a mais interessante para o fim.

Uma das características marcantes das democracias modernas é o peso decisivo que o acesso aos grandes meios de comunicação social tem na determinação de quem chega ao poder. A batalha da informação e da mediatização decide quem pode ter aspirações políticas e quem não pode, a democracia depende cada vez mais do dinheiro, o dinheiro que paga a boa propaganda, a boa publicidade, a boa imprensa. Vivemos em sociedades massificadas onde é cada vez mais importante parecer do que ser, onde a reflexão rareia, as leituras são de consumo rápido e a consequente preparação crítica desaparece, abrindo lugar à hegemonia dos grandes grupos de comunicação sobre a chamada “opinião pública” sem que esta disponha dos meios de ver para além dos véus.

Dito isto imagine-se o impacto para o Vlaams Belang de um boicote jornalístico alargado, de um acordo de não publicação das ideias eleitorais do partido nos quotidianos flamengos. Mas um silenciamento exclusivamente dirigido àquele partido. Pois bem, é isso mesmo que pretendem fazer os jornais flamengos. O caso segue para tribunal, veremos o que daí resulta, no final, como diz o ditado, o que conta é a intenção, e essa ficou bem clara. Se para alguma coisa isto servirá é para voltar a expor o tipo de jornalismo que é dirigido aos movimentos nacionalistas e o sério obstáculo que por via disso os últimos enfrentam no actual sistema, porque quem assim pretende agir não pode com certeza pretender fazer crer que informa com isenção, mesmo quando é essa a ideia que cinicamente pretende transmitir. (2)

Mas a cereja no topo do bolo, nesta breve viagem ao reino da Bélgica, fica para o fim. Filip Dewinter chamou-lhe a terceira tentativa governamental para acabar com o partido mas pelo seu simbolismo esta é especial, encerra algo de verdadeiramente distópico. A ministra da Justiça, neste Abril que passou, levou a debate parlamentar uma lei que visava retirar os direitos políticos a quem fosse condenado, entre outras coisas, por… “racismo”! (3) Ora vale a pena lembrar que as legislações europeias, reflectindo o omnipresente dogma da multiculturalidade, abrem espaço para a facilitação e vulgarização deste tipo de acusações, contra aqueles que se manifestam em defesa de uma Europa europeia (passe a redundância), contra a imigração, a islamização, etc.

Para se perceber bem o alcance arbitrário deste tipo de coerções sobre a liberdade dos europeus basta referir que o próprio DeWinter foi acusado de racismo por ter dito algo tão simples quanto isto:”Não temos qualquer ódio aos estrangeiros, mas se tiverem de lhe chamar fobia então que seja islamofobia. Sim, eu temo o islão”.

Esta lei, que obviamente inclui também o sagrado holocausto, acorrentaria, decisivamente, os nacionalistas, de forma letal, quebrando assim qualquer possibilidade de fazer oposição às políticas imigratórias em curso no país, destruindo qualquer partido nacionalista e, mais do que isso, silenciando qualquer foco de contestação vindo da sociedade civil. A ironia última em tudo isto é que foi neste mesmo país europeu que nas mais recentes eleições se processou uma naturalização massiva de imigrantes, com grande impacto nos resultados eleitorais em prejuízo do Vlaams Belang, e enquanto se atribuem direitos políticos a cada vez maior número de alógenos, ameaçam-se os nacionais que a isso se opõem com a perda, precisamente, de direitos elementares de cidadania.

Por enquanto o partido conseguiu impedir a aprovação desta inenarrável proposta, mas a possibilidade que fica em aberto e a gravidade do que ali foi pretendido não deve passar inobservada, diz muito sobre o estado a que chegaram as nações continentais, sobre as forças que as dirigem e sobre o que aparenta ser o cada vez mais trágico destino das suas populações. Esta caminhada para o abismo, para a extinção cultural, imposta a uns poucos, que continuam a bater-se, mas voluntária em muitos, demasiados até, não tem paralelo na história da humanidade e indicia uma verdadeira “patologia colectiva”.

(1) Population Replacement in the Capital of Europe

(2)ELECTIONS07 Quotidiens flamands: pas de propagande du Vlaams Belang

(3)Dewinter will “seek asylum in NL”

Uma luz na escuridão

Um espaço onde a cultura e a reflexão atingem níveis acima da média:Prometheus

Mística

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«Se fosse absolutamente necessário situar e catalogar o fascismo em termos parlamentares, então este último poderia, sem mais, colocar-se a igual distância da extrema-direita e da extrema-esquerda, por detrás da bancada do Presidente da Assembleia, de costas para o Parlamento e com o rosto e o coração voltados para o povo e a sociedade.»

Robert Aron e Arnaud Dandieu, La Révolution nécessaire, Paris, Jean-Michel Place, 1993 (Ed. original 1933)

Alfred Baeumler, intérprete de Nietzsche

Este artigo diz respeito a uma recente iniciativa das Edizioni di Ar, referente à publicação dos textos de Alfred Baeumler sobre Nietzsche. Por ocasião do quarentenário das Edizioni di Ar (nascidas no Outono de 1963), os textos baeumlerianos representam, simbolicamente, uma espécie de “fecho”. Como o fecho tem um duplo movimento, de abertura/encerramento, assim as obras de Baeumler encerram um ciclo e, ao mesmo tempo, abrem outro. Mas para melhor esclarecer o recurso a tal “símbolo” é conveniente subdividir, esquematicamente, o artigo em três pontos, distintos somente por razões analíticas, mas, na realidade, entre eles estreitamente interligados.

Antes de tudo, confirma-se a persistente centralidade da obra nietzschiana. Obviamente isto implica encarar Nietzsche com seriedade de estudo e não limitar-se a inseri-lo naquela lista de “nomina-numina” a recitar como um mantra ou a referir alguns aforismos seus quando calha. Centralidade e não actualidade, contudo. Esta, a articulação essencial. No sentido em que essencial permanece o que Nietzsche diagnostica (o niilismo) e prognostica (a Umwertung axiológica). Mas tudo isto permanece, muito mais que ontem, inactual. Porque o hoje é perfeitamente refractário às grandes lições nietzschianas. Hoje, com efeito, assistimos à mais desenfreada reapresentação daqueles valores dos quais Nietzsche já havia previsto, com olhar “meridiano”, o declínio.

O hoje é, enfim, substancialmente pré-nietzschiano. Certo, resta em pé boa parte da retórica nietzschiana (onde é preciso ler o eco da “retórica” de Michelstaedter). Ou seja, resta a simulação do acolhimento da mensagem de Nietzsche, mas em face, contudo, da sua neutralização, da redução do pensamento nietzschiano a fórmulas estereotipadas (a”morte de Deus”, etc.), de vagas afirmações de “desencanto”, da mitigação de Nietzsche pelos arautos do “pensamento brando”( em via de esgotamento, entre mais) e por aí.

E no interior da centralidade da obra de Nietzsche um papel de relevo é ocupado por aquele seu lado político que, depois de décadas, foi finalmente desenterrado pelo volume de Domenico Losurdo: Nietzsche, il ribelle aristocratico, Torino, 2002. Trata-se do Nietzsche quase antecipador da Revolução Conservadora, algo intensamente sublinhado anteriormente em Itália por Adriano Romualdi e por Giorgio Locchi, na esteira do trabalho de Armin Mohler: Die Konservative Revolution in Deutschland 1918 – 1932, una Guida, Firenze, 1990 (edição original de 1950), cuja inteira terceira parte, intitulada “Imagens-guia”, é, para o efeito, principalmente dedicada a Nietzsche [1]. Antes, o lado político de Nietzsche acaba por contribuir para uma melhor focalização da obra nietzschiana por inteiro, como Losurdo explicou detalhadamente [2].

Passando agora ao segundo ponto, evidencia-se o interesse de décadas das Edizioni di Ar relativamente a Nietzsche, testemunhado pela publicação, no longínquo 1971 (segunda edição em 1981) do volume de Adriano Romualdi: Nietzsche e la mitologia egualitaria, e prosseguido com a publicação, em 1981, do texto de F. Ingravalle: Nietzsche illuminista o illuminato?, e, em 1995, do importante trabalho de G. Brandes: Friedrich Nietzsche o del radicalismo aristocratico[3]. Esta constelação de textos constitui uma espécie de “político”, com a adição, por último, dos textos de Baeulmer.

Detalhando: a atenção constante das Edizioni di Ar por Nietzsche não se encontra tanto na tentativa de retirar ao “espírito do tempo” o monopólio hermenêutico da obra nietzschiana (aspecto contudo crucial se se quer dar vida a um “cânone cultural” autónomo) quanto na necessidade de ajustar contas com o “coração negro”(o niilismo) da modernidade. E ninguém mais que Nietzsche merece ser interrogado a esse respeito.

Com Nietzsche, o desencantamento, verdadeiro “estandarte de guerra” da modernidade, volta-se contra esta última. Este é o gesto decisivo: submeter a própria modernidade à impiedosa dissecação do desencantamento. Isto é, mostrar o rosto “mítico-ideológico” da modernidade revelando o segredo: todos os valores “modernos”, a partir do cristianismo, são intrinsecamente niilistas. A este “apocalipse” Nietzsche responde do único modo possível, com uma redobrada “dose” (ao mesmo tempo veneno e remédio [4]) de niilismo. Por um lado o niilismo é “veneno” porque conduz ao naufrágio e à perda de sentido derivantes da queda de “valores supremos” nos quais o “último homem” confia, por outro lado é “remédio” porque, fazendo tábua rasa do que em realidade não era mais que ídolos torna possível o advento de novas “matrizes de valores”. Em suma, Nietzsche está perfeitamente consciente de uma verdade fatal: denunciar a essência niilista dos “valores” sucessivos do cristianismo significa acelerar o próprio curso do niilismo, levá-lo às últimas consequências. Significa rasgar o consolador “véu de Maia”, que, escondendo o niilismo de “valores”, permitia à humanidade continuar a vida. Mas neste ponto abrem-se três perspectivas: ou fingir que não é nada (ficar surdo ao anúncio do homem “louco”) ou, passivamente, lamentar-se pelo desaparecimento dos “valores”, ou impulsionar uma nova “paisagem”. A última é a via nietzschiana. Que não é, contudo, um mero expediente tendente a substituir um “valor” por outro de modo que tudo fique inalterado e a crise seja “esquecida”. Ao contrário, Nietzsche “age” consciente do niilismo. É o seu ponto de força essencial.

Ora bem, é precisamente a “via” nietzschiana a estar no centro do interesse das Edizioni di Ar. Ou seja, não se abstrair da crise da modernidade, antes assumi-la como ponto de partida para desenhar novos cenários (mesmo políticos, sobretudo um novo Rangsordnung baseado sobre as múltiplas “estruturas de império” geradas pela vontade de potência). E, não por acaso, esta é a tese central do livro de Romualdi e Ingravalle. Sucintamente, no binómio revolucionário-conservador, revolução é tomar consciência da desagregação niilista sem nostalgia pelo que desaba, conservar é preservar (no renovamento) aquela originária conformação-intuição do mundo que, na concepção nietzschiana, é reassumida com um nome: Dionísio.

Finalmente Baeumler. Proibido pela sua adesão ao nacional-socialismo e por ter sido a “figura chave para a assimilação de Nietzsche no âmbito ideológico do III Reich” (Montinari dixit), Baeumler foi relegado, por décadas, ao esquecimento, sendo contudo, objectivamente, um estudioso de primeira grandeza. Com “óbvios” corolários: a obra de Baeumler foi, de volta em volta, liquidada por ser “ideológica”, recuperada sem referência ao autor, propositadamente silenciada, ou, por fim, drasticamente subestimada [5]. E para quem conhece minimamente as coisas da cultura sabe que frequentemente se se limita a renovar os juízos condenatórios sem sequer se indagar sobre a sua validade [6].

É por isso que as Edizioni di Ar acharam oportuno publicar os trabalhos de Baeumler, partindo da Estética (1999; ed. orig. 1934), para depois continuar com os dois volumes saídos em 2003: Nietzsche filosofo e politico (ed. orig. 1931) e L’innocenza del divenire. Textos nietzschianos (uma antologia composta de textos que vão de 1929 a 1964).

Mas qual é a interpretação que Baeumler dá de Nietzsche? Antes de mais, Baeumler é o primeiro a considerar Nietzsche um filósofo e a estudá-lo como tal, colocando em evidência a unidade do pensamento e o fundamental ângulo metafísico-político. E sem esquecer que Baeumler, graças também à sua tutoria da obra de Nietzsche, editada, a partir de 1930, pela Kroener (compreendendo uma antologia em dois volumes de material póstumo), foi um conhecedor em primeira-mão da complexa “teia” construída por Nietzsche.

Em particular, Baeumler situa na Grécia arcaica o fundo metafísico ao qual Nietzsche aspira, em vista a uma renovada essência germânica. Dito de outro modo, “o jovem Nietzsche aproxima-se aos gregos como aos verdadeiros educadores. Aponta não tanto a um restabelecimento da “antiguidade”, mas a fazer reviver o mundo helénico reinvocando os instintos mais recônditos da essência germânica” [7]. É do mundo grego pré-socrático que Nietzsche tira as suas referências cruciais: Dionísio e Heraclito sobretudo. Mas não há nada de historicista nisto, nota oportunamente Baeumler. Não se trata de mera paixão antiquária ou de interesse meramente académico/filológico. Ao contrário, aqui está em jogo a filosofia do devir. Isto é, uma realidade “heraclitiana”, agonística, heróica, centrada sobre a luta. “O Nietzsche filósofo é o dionísico-agonístico”[8], escreve, peremptório, Baeumler. E ainda :”Dionísio é a fórmula originária da vontade de potência” [9]. Daqui, Baeumler apresenta uma “paisagem” conturbada das vontades de potência em luta entre si, uma paisagem não ordenada por qualquer teleologismo mas sempre variável, e na qual é a inocência do devir e o “amor fati” a triunfar. Não há lugar, num tal cenário, nem para a opressiva mágoa cristã do pecado nem para uma “ordem” determinada de uma vez para sempre. Mas quem pode permanecer firme no mundo “heraclitiano”? Noutros termos, quem está capaz de vencer o niilismo e enfrentar a nova realidade “pós-niilista” decorrente do embate das vontades de potência? A resposta: “ Pela noção de “superhomem” Nietzsche procura ultrapassar o niilismo que antevê pender sobre a Europa e do qual reconhece o advento e os traços distintivos com formidável precisão” [10]

Portanto, para Baeumler a filosofia de Nietzsche é radicalmente não burguesa e não cristã, afastadíssima do Reich cristão-alemão, do idealismo consciencialista cartesiano e dialéctico hegeliano (que neutraliza a polémica na síntese conciliadora) e também do “culturalismo” apolítico típico da burguesia sonhadora. Do mesmo modo, claramente, Nietzsche está a uma distância sideral do igualitarismo democrático [11] (nada mais que uma secularização do ressentimento cristão).

Concluindo: Baeumler não só antecipa em setenta anos a leitura política de Nietzsche, hoje finalmente surgida também em Itália com Losurdo, mas é também um salutar antídoto contra todas as leituras “tranquilizantes” do pensamento nietzschiano.

Giovanni Damiano, Orion, nº230,Novembro de 2003

[1] Não por acaso Nietzsche é presença fundamental em alguns dos grandes protagonistas da Revolução conservadora. Por exemplo, Ernst Jünger considerava Nietzsche, juntamente com Schopenhauer e Hölderlin, um dos seus “faróis” (v. E. Juenger, Scritti politici e di guerra, vol. I°, Gorizia, 2003, p. 95, nota 74).

[2] Para uma análise mais aprofundada do texto de Losurdo, mesmo em relação aos volumes sobre Nietzsche editados pelas Edizioni di Ar remeto ao meu “Il Nietzsche di Romualdi, Ingravalle e Losurdo”, in Margini, n° 42, 2003, pp. 1-2.

[3] Recorda-se, a propósito, que Nietzsche, numa carta a Brandes de 2 de Dezembro de 1887 escreve: “a expressão radicalismo aristocrático que emprega é óptima: permita-me dizê-lo, é a coisa mais inteligente que li até agora sobre o meu conto”.

[4] Cfr. E. Benveniste, Il vocabolario delle istituzioni indoeuropee, vol. I°, Torino, 1976, p. 49 per la duplice natura, di rimedio e veleno, della ‘dose’.

[5] Para não falar dos casos em que as ideias de Baeumler foram atribuídas a outras pessoas. Por ex. a importante definição de Nietzsche como “agulha oscilante” é usualmente atribuída a Thomas Mann (cfr. L. A. Terzuolo, “Come interpretare il Nachlass di Nietzsche”, appendice ad A. Baeumler, L’innocenza del divenire. Scritti nietzscheani, Padova, 2003, pp. 263-264). Por outro lado, em boa parte ainda por explorar estão as ligações entre Baeumler e outros protagonistas da cultura alemã do Novecentos, em especial Martin Heidegger. A respeito assinalo que no último numero de Margini (nº44, 2003) foram publicados documentos inéditos de Heidegger e Baeumler sobre a sua ligação.

[6] Importante, ao cabo de uma rectificação da acusação movida a Baeumler de ter “nazificado” Nietzsche, é o texto de Baeumler, “Postille alle tesi di Mazzino Montanari su Baeumler interprete di Nietzsche”, appendice ad A. Baeumler, L’innocenza del divenire, cit., pp. 243-248.

[7] A. Baeumler, L’innocenza del divenire, cit., p. 16.

[8] Ivi, p. 27.

[9] Ivi, p. 21.

[10] Ivi, p. 114.

[11] Cfr. O parágrafo sobre Rousseau in A. Baeumler, Nietzsche filosofo e politico, Padova, 2003, pp. 89-94.

O Estado subsidiário – nem liberalismo nem socialismo

Na sua obra maior, intitulada «L’Etat subsidiaire » (PUF, 1992), Chantal Delsol escreve:

«A História política, económica e social da Europa nestes dois últimos séculos encontra-se largamente dominada por uma questão maior: a do papel do Estado. Os países europeus oscilam do liberalismo ao socialismo, ou inversamente, em idas e vindas que traduzem a incapacidade, não de resolver mas de dominar esta questão primordial. A sedução exercida pelo marxismo e pelo socialismo estatista sobre as opiniões ocidentais até estes últimos anos explica-se em parte pela convicção, largamente partilhada, que não existiria alternativa ao liberalismo senão o estatismo. Os defensores da democracia pluralista inquietam-se por ver o desenvolvimento dos “direitos-crédito” gerar o dirigismo e colocar em causa, inexoravelmente, os “direitos-liberdade” que se procuravam concretizar. A ampliação do Estado-providência deixa acreditar num processo fatal tendendo progressivamente a negar a própria democracia.
A ideia de subsidiariedade situa-se nesta problemática inquietante. Ela procura ultrapassar a alternativa entre o liberalismo clássico e o socialismo centralizador, colocando diferentemente a questão político-social. Legitima filosoficamente os “direitos-liberdade” e regressa às fontes dos “direitos-adquiridos” que terão sido desviados da sua justificação primeira. Chega a um acordo viável entre uma política social e um Estado descentralizado, pela reunião paradoxal de duas renúncias: abandona o igualitarismo socialista em benefício da dignidade, e abandona o individualismo filosófico em benefício de uma sociedade estruturada e federada».

A ideia de subsidiariedade é estranha ao liberalismo filosófico porque é estranha ao individualismo e faz parte do pensamento organicista, em vez de considerar a humanidade como uma justaposição de indivíduos egoístas e libertos de toda a filiação colectiva, pensa os homens enquanto pessoas inseridas em comunidade orgânicas (famílias, corporações, comunas, cantões…).

Deste ponto de vista está muito afastada do individualismo que prevalece nas sociedades ocidentais, a sua adaptação nas nossas sociedades não se faz espontaneamente e necessita pelo menos de um regresso dos valores comunitários, isto é, da noção de deveres das pessoas face às comunidades nas quais estão inseridas.

A fim de permitir esta adaptação e de tomar em consideração o imperativo moderno do respeito pelas liberdades pessoais, é preciso, sem dúvida, completar o pensamento de Althusius, que é herdeiro do pensamento medieval, pela noção de autonomia da pessoa, esta última sendo então considerada como elemento de base da sociedade, titular de liberdades e de direitos mas também de deveres em relação às outras pessoas e às diferente comunidades nas quais se insere organicamente.

A ideia de subsidiariedade é igualmente estranha ao socialismo e ao Estado-providência porque confia nas pessoas e nas comunidades constitutivas do Estado no que concerne à produção e à distribuição de bens e serviços, por um lado, e para a organização destas comunidades por outro lado. Ignora o igualitarismo (que associa a falsa ideia de igualdade natural à vontade estatista de igualizar as qualidades e os bens das pessoas), aprova a livre expressão dos talentos e recusa a ideia de um Estado que se substitui às pessoas, às famílias e a todos os corpos intermédios.

Para atenuar os desequilíbrios que podiam resultar do exercício das liberdades individuais e comunitárias, os pensadores subsidiaristas incluíram na sua doutrina o imperativo de solidariedade (entre as pessoas, de uma parte, entre as comunidades intra-estatais e as pessoas, de outra parte, entre as comunidades intra-estatais, por fim.

Subsidiariedade, absolutismo, jacobinismo, bolchevismo e fascismo

O princípio de subsidiariedade opõe-se ao absolutismo monárquico (ou partidocrático, oligárquico…) porque considera que a sociedade e as suas componentes associadas prevalecem sobre o Estado, que retira o seu poder destas últimas e que deve limitar a sua acção às únicas prerrogativas delegadas por elas. Assenta na ideia de que a sociedade precede cronologicamente o Estado, que este último é uma criação da sociedade com vista a satisfazer as suas insuficiências e não o contrário. Por outro lado, o princípio de subsidiariedade interdita a concentração de competências e de soberania somente no Estado.

O Estado subsidiário partilha a soberania e as competências com as diferentes componentes da sociedade.

Vimos que Althusius contestava a posição de Bodin, o teórico da monarquia absoluta; e teria com certeza contestado o poder jacobino que mais não fez que transferir a soberania aboluta do monarca para a nação cuja «vontade geral» é expressa pelos representantes. A ditadura da vontade geral ( essa pretensa vontade geral é uma abstracção como gostavam os pensadores de 1973) não comporta nenhuma delegação de competências nem nenhuma partilha de soberania, duzentos anos depois esta vontade geral tornou-se a vontade de uma medíocre oligarquia partidocrática muito ciosa das suas prerrogativas e segura de expressar a dita vontade geral, para nossa maior desgraça.

O princípio de subsidiariedade é em total contradição, bem entendido, com o bolchevismo, sob todas as suas formas, que fez de um partido comunista considerado vanguarda do proletariado o único detentor da autoridade, da soberania e da competência; o pseudo-federalismo soviético nunca foi o quadro de uma devolução real de soberania ou de competência.

É também totalmente estranho ao fascismo, que fez do Estado o centro da sociedade e que queria integrar a totalidade da sociedade no seu seio, mal deixando autonomia às famílias que eram, elas também, mobilizadas pelo Estado e para o Estado.

No caso do hitlerismo houve claramente uma liquidação do longo passado subsidiarista da Alemanha (supressão dos parlamentos regionais) para além da mobilização do conjunto do povo ao serviço do Estado total.

Bruno Guillard

Nota sobre a «Exortação da Guerra» – Gil Vicente e a trifuncionalidade indo-europeia

(Publicado como no original, encontrado na Terra e Povo)

Em homenagem à memória de Georges Dumézil

A Exortação da Guerra de Gil Vicente começa, o seu tanto contraditoriamente, pela declamação de um clérigo nigromante que sabe

(…) modos d`encantamentos

quaes nunca soube ninguém;

artes para querer bem,

remedios a pensamentos:

[fazendo] de um coração duro

mais que muro,

como brando leituairo[1];

clérigo que, por tudo quanto procazmente diz àcerca do seu próprio poder (segundo as suas palavras, não mais do que casado com as leis das coisas e dos seres[2]), se poderá assimilar com Mercúrio, o deus dispensador de bens e toda a abundância, a um tempo que inimigo de todo o empenho heróico, toda a claridade e toda a coerência[3]. Um Mercúrio que é plenamente aduzido (e, com isso, o paradoxo com o espírito de uma «exortação da guerra» não pode ser maior) nas palavras que Policena, a primeira das figuras por cuja sucessiva intervenção a peça se desenrola, dirige ao Infante D. Fernando, filho do rei D. Manuel:

Senhor Iffante Dom Fernando,

vosso signo é de prudencia,

Mercúrio por excelencia

favorece vosso bando.

Sereis rico e prosperado

e descansado,

sem cuidado e sem fadiga,

e sem guerra e sem briga[4].

São tais versos deveras impressionantes, particularmente os quatro que pusemos em direito, dado que neles a gama do vânico[5] é, do mesmo passo, declarada tanto positiva (além da alusão ao deus das riquezas, «sereis rico e prosperado / e descansado») quanto negativamente («sem cuidado e sem fadiga, / e sem guerra e sem briga»[6]). De facto, quase nada falta para inculcar a terceira função indo-europeia da sensualidade e bem-estar, uma vez que superlativamente se exprime a antinomia com qualquer forma de esforço — desde o mero cuidar até ao pleno guerrear — e se põe a tónica na riqueza, na prosperidade e no descanso. (…)

Mas daí se transita, através do amor, para o elogio da guerra.

Já o amor implica, por parte de quem lhe está sujeito, os predicados (manhas) dos perfeitos cavaleiros (perfeitos batalhadores[7]) das novelas de cavalaria. É o que precisa Policena, em resposta ao clérigo:

Cle. Que manhas, que gentileza

ha de ter o bom galante?

Pol. A primeira é ser constante,

fundado todo em firmeza.

Nobre, secreto, calado,

sofrido sem ser desdenhado,

sempre aberto o coração

para receber paixão,

mas não pera ser mudado.

Ha de ser mui liberal,

Todo fundado em franqueza:

Esta é a mor gentileza

Do amante natural.

……………………………………..

ha de ser o seu comer

dous bocados suspirando,

a dormir meo velando,

sem de todo adormecer.[8]

Advertir que o que deixamos sublinhado se opõe ao requerido pelo exercício da terceira função (e já não dizemos pelo da velhacaria, que é instabilidade, mudança, indiscrição, mexerico, mentira, dissimulação, glutonaria — de bens, de alimento, de informação — e dormir de pedra). E notar, outrossim, que as qualidades de constante, firme, nobre, sincero («sempre aberto o coração»), liberal, todo fundado em franqueza, sóbrio em comer e de pouco dormir são cousas no texto pedidas ao enamorado que por igual se exigem ao combatente, como nos diz designadamente uma formosa página do Victorial de Gutierre Diez de Games[9]. (…) A respeito do que Policena nos confirma quando, depois de afirmar que

quem ama com cautela (= com mau propósito, com não segue a tenção……astúcia, calculistamente)

dos Godos[10]

(onde a alusão à frontalidade e ao ímpeto, à generosidade e à nobreza, à vontade e ao estilo, respeita tanto à instância amorosa quanto à guerreira), dictamina que a causa principal de que um homem deva ser amado consiste em

que seja mui esforçado:

isto é o que mais lhe val.[11]

Aditando, logo a seguir:

Porque um velho dioso,

feio e muito tossegoso[12],

se na guerra tem boa fama,

com a mais formosa dama

merece de ser ditoso.

E, desde aí, o espírito se transfere da paz para a guerra:

Senhores Guerreiros guerreiros,

e vós Senhoras guerreiras,

bandeiras e não gorgueiras

lavrae pera os cavaleiros.

Que assi nas guerras Troianas

eu mesma e minhas irmans

teciamos os estandartes,

bordados de todas partes

com divisas mui louçans.

Com cantares e alegrias

davamos nossos colares,

e nossas joias a pares

per essas capitanias.

Renegae dos desfiados,

e dos pontos enlevados:

destrua-se aquela terra

dos perros arrenegados.

Ó quem vio Pantasilea

com quarenta mil estrellas

armadas como as estrellas

no campo de Palomea![13]

«Renegae dos desfiados», como quem diz: deixai os refinados lavores de uma costura própria dos remansosos, femininos ritmos da paz; como quem diz: optai pela guerra, tornai-vos guerreiras. Claramente se perfilando a inculcação de uma preferência das bandeiras sobre as gorgueiras, e também da alegria com que se devem sacrificar «colares, …joias a pares» (inequívocos índices de luxo e opulência, mormente feminis), em aras de uma aplicação castrense que se oferece à mesma mulher («armadas como as estrelas» ou cintilantes por seus ferros e aços no campo de batalha).

E então estabelece-se definitivamente a jerarquia entre paz e guerra, riqueza e ferocidade, comércio e beligerância, ditos e feitos (vozes e nozes), ser-se Genovês e ser-se Português. Dá-se às armas, enfim, toda a prioridade, tal como diz Pantasilea, que é quem a Policena, depois de ser invocada por esta, sucede sobre o tablado:

Ó! Deixae de edificar

tantas camaras dobradas

mui pintadas e douradas,

que he gastar sem prestar.

Alabardas, alabardas!

Espingardas, espingardas!

Não queirais ser Genoveses,

Senão muito Portugueses,

E morar em casas pardas.

Cobrai fama de ferozes,

Não de ricos, qu`he p`rigosa:

dourae a patria vossa

com mais nozes que as vozes.[14]

Teor que Aquiles, por sua vez chamado por Pantasilea (o que por tudo se entende), logo após reforça do seu ponto de vista andriarcal, de algum modo definindo duas situações (a da mansidão — ou evasão — pacífica e pacifista, e a de uma completa tributação à guerra) e concluindo pela opção beligerantes

……………………..

quando Saturno dormia

com todo seu firmamento[15];

e quando o sol mais luzia,

e seus raios apurava,

e a lua aparecia

mais clara que o meio dia;

e quando Venus cantava,

e quando Mercurio estava

mais pronto em dar sapiencia;

e quando o Ceo se alegrava,

e o mar mais manso estava,

e os sinos em clemencia;

e quando os sinos estavam

em mais gloria e alegria,

e os pólos s`enfeitavam,

e as nuvens se tiravam

e a luz resplandecia;

e quando a alegria véra

foi em todas naturezas:

nesse dia, mes e era,

nasceram Vossas Altezas.

……………………………………….

Quando Roma a todas velas

conquistava toda a terra,

todas donas e donzellas

davam suas joias bellas

para manter os da guerra.

Ó pastores da Igreja,

moura a seita de Mafoma,

ajudae a tal peleja,

que açoutados vos veja

sem apelar pera Roma.

Deveis de vender as taças,

empenhar os breviairos,

fazer vasos de cabaças,

e comer pão e rabaças,

por vencer vossos contrairos.[16]

O sono de Saturno e «todo seu firmamento» é de si eloquentíssimo para significar o inteiro antínomo da bélica tensão. Por outro lado, a necessária tributação à guerra efectua-se em termos materiais (a entrega das jóias de «todas donas e donzellas… para manter os da guerra») e em termos de renúncia e dura ascese dos eclesiásticos («fazer vasos de cabaças, / e comer pão e rabaças»). E isso como condição sine qua non de empresa colectiva que, como que vocacional, carismaticamente, se cumpre («quando Roma a todas velas / conquistava toda a terra»), ou para se vencer o inimigo («vossos contrairos»), para se vencer na guerra.

E acode também, para remate da peça, uma das três egrégias figuras (Aníbal, Heitor e Cipião), agora suscitadas por Aquiles: Aníbal. Este — cuja presença, como a dos outros dois, é «cousa escusada» e «não faz mister» no invencível, denodadíssimo Portugal de Quinhentos — aparece a reiterar definitivamente a prioridade de uma guerra vinculada à devação, à razão, à discrição, e contrária enquanto ela às prosperidade e abundância peculiares de um mundo pacifista:

He guerra de devação,

por honra de vossa terra,

cometida com razão,

formada com discrição

contra aquela gente perra.[17]

E:

Ó Senhoras Portuguesas,

gastae pedras preciosas,

Donas, Donzelas, Duquesas,

que as taes guerras e empresas

são propriamente vossas.[17]

……………………………………………

Ó! que não honram vestidos,

nem mui ricos atavios,

mas os feitos nobrecidos;

não briaes d`ouro tecidos:

com trepas de desvarios:

dae-os pera capacetes.[18]

Mostra-se aqui, em toda a evidência, o primado das funções da Soberania (ou da Religião) e da Força (Guerra) sobre a da Fecundidade-Sensualidade. Primado, por outras palavras, de uma posição ásica — sábia, ascética, heróica, cingida com o ser —, sobre uma posição vânica — ígnara, pusilânime, cousista, cobiçosa, casada com o ter —. E, com isso, a submissão dos (das) representantes da terceira função às necessidades-projectos das outras duas. Porque não só se exorta a um desprendimento de jóias e viandas, e de quanto integra uma existência materialmente deleitosa, como outrossim expressamente se afirma que as mesmas guerras e empresas pertencem às damas lusitanas — mães, filhas, irmãs, noivas, esposas dos homens que nelas lutam, sofrem e morrem, ou, de todo o modo, a fonte humana de uma comunidade nacional —. A peça termina, com efeito, mais do que com submeter a terceira função às outras duas, com incluí-la, em atitude dominante, no status da guerra e sua possibilidade-certeza. Um status em que a mulher não será só, ou apenas sobretudo, a origem moral-carnal dos combatentes, uma vez que, como as amazonas anteaduzidas, pode — e em certas circunstâncias deve — formar com gesto belígero ao lado do varão.

Pela sua estrutural clareza, reproduzimos, na íntegra, a tirada de Aquiles:

Deveis, Senhores, esperar

em Deos, que vos ha de dar

toda África na vossa mão.

África foi de Christãos,

mouros vo-la tem roubada.

Capitães ponde-lhe as mãos

que vós vireis mais louçãos

com famosa nomeada.

Ó Senhoras Portuguesas,

Gastae pedras preciosas,

Donas, Donzellas, Duquezas,

que as taes guerras e empresas

são propriamente vossas.

He guerra de devação,

por honra de vossa terra,

cometida com razão,

formada com discrição

contra aquela gente perra.

Fazei contas de bugalhos,

e perlas de camarinhas,

firmaes de cabeças d`alhos;

isto sim, Senhoras minhas,

e esses que tendes dae-lhos.

Ó! que não honram vestidos,

nem mui ricos atavios

mas os feitos nobrecidos;

não briaes d`ouro tecidos

com trepas de desvarios:

dae-os pera capacetes.

E vós, priores honrados,

reparti os priorados

a Suiços e a soldados.

Et centum pro uno accipietis.

A renda que apanhais

o melhor que vós podeis,

nas igrejas não gastais,

aos proves pouca dais,

eu não sei que lhe fazeis.

Dae a terça do que houverdes

pera Africa conquistar,

com mais prazer que puderdes;

que quanto menos tiverdes,

menos tereis que guardar.

Ó senhores cidadãos,

Fidalgos e Regedores,

escutae os atambores

Com ouvidos de Christãos.

E a gente popular

avante! não refusar,

ponde a vida e a fazenda,

porque pera tal contenda

ninguem deve recear.[19]

Onde ressaltam os três estratos-funções da Soberania-Sabedoria, situada ao mais alto nível, que é o de Deus Senhor de que dimana («deveis, Senhores, esperar / em Deus, que vos ha de dar / toda África na vossa mão», «he guerra de devação, / por honra de vossa terra, / cometida com razão, / formada com discrição»), da Força («Capitães ponde-lh`as mãos» como frase mais destacada num contexto exaltador da guerra) e da Fecundidade, Riqueza, Opulência, Prosperidade («Senhoras Portuguesas», «pedras preciosas», «ricos atavios», «briaes d`ouro», «priorados», «rendas», e mesmo «a vida e a fazenda»).

A trifuncionalidade indo-europeia, estudada e magistralmente explicada-iluminada por Dumézil ao longo de meio século e de milhares de páginas de uma obra enxundiosíssima, encontra nesta tragicomédia de Gil Vicente surpreendente ilustração. Qual se o grande dramaturgo peninsular se figurasse criticamente essa trifuncionalidade e, criticamente, levando pela mão o seu portentoso engenho, tivesse querido exprimi-la de forma teatral. Desnecessário seria dizer que isso não teve, decerto, lugar, uma vez que o talento verdadeiro se encontra de natura misteriosamente assimilado com as essências e estruturas profundas de toda a realidade.

Pretória, Out.º 75.

Bayona-la-Real, Dez.º 87.

Alto da Castelhana (Cascais), Dez.º 95.

Última revisão-redacção, Porto-Covo, Agosto 96.

Notas:

1 — Págs. 128-129 do vol. IV das Obras Completas de Gil Vicente, com prefácio e notas do Prof. Marques Braga (Lisboa, Sá da Costa, 1943) — edição que utilizamos, respeitando-lhe a ortografia, ao longo deste apontamento —. No que se refere à contradição aludida, na qual um clérigo (primeira função existencial, conforme uma Weltanschauung indo-europeia), situado numa circunstância de exortação da guerra (segunda função), e uma guerra obrigada por motivos religiosos, à qual, por isso, ampara a Igreja (de novo, primeira função), se assimila com Mercúrio e as potências infernais, importa dizer que tal contradição se atenua se pensamos que a magia, o sonho e, inclusive, a metamorfose (basta com lembrar Zeus-Jupiter e o seu culto), apesar de mais interpretados pelo velhaco divino (Dumézil, Radin, Kerenyi, Jung e outros), pertencem também à primeira função ou no âmbito dos seus titulares se manifestam. (À relação mistérica entre o ctónico e o solar e celestial não foge nenhum dos principais deuses e heróis em qualquer dos quadrantes da mítica indo-europeia. V. Charles Beaudoin, Le Triomphe du Héros, Paris, Plon, Présences, 1952, e sobretudo a nota 22 do nosso ensaio, Presenças célticas, escandinavas, altogermânicas e outras no “Libro de Buen Amor” de Juan Ruiz, a aparecer (?), com outros, no livro Afã de entender, cuja publicação prevemos se efectue dentro dum ano.)

2 — Tudo o que contêm as págs. 129-131.

3 — Eis a ficha, quanto possível completa, de Hermes-Mercúrio:

O deus do embuste e de todas as encruzilhadas físicas e morais.

O astuto, o enganador, o, em extremo desenvolto, patrono de ladrões e de velhacos — nomeadamente dos que sabem ou intentam, clandestina ou mesmo abertamente, alcançar vantagens imerecidas —. «Senhor da gente que age na sombra.» (Eurípedes). Obscuridade de que é filho e senhor. Patrono outrossim dos criados (pícaros), aos quais comunica uma particular aptidão para se tornar indispensáveis a seus amos (que o deus identicamente trabalha…)

O indiscreto (bisbilhoteiro) por antonomásia: aquele que tudo sabe, tudo delata e, inclusive, tudo apregoa. Velocíssimo e como que ubíquo. O demiurgo das intrigas e enredos mais inextrincáveis. (Loki e Iago, nos planos mítico e dramatúrgico, respectivamente.)

A mesma instabilidade. E, assim, não pertencendo a nenhum círculo, nem tendo morada certa. Antes deambulando de cá para lá em todos os níveis e sectores. E surgindo, sobretudo, ao homem solitário (Mefistófeles).

Todas as peripécias, aventuras e metamorfoses. Príncipe de todo o vário e contraditório. Todos os meandros do engano e da felonia.

Filho-mensageiro (e paredro) de Zeus-Júpiter (pai dos deuses e paradigma de toda a velhacaria) e da ninfa-cova Maya (que «vivia en el fons d`un antre ombrós» — Maragall). Pai do perjuro Autólicos e avô do aleivoso Ulisses.

Cobarde e fugindo à luta, à que, como seu neto o arqueiro Ulisses, cumpre à distância. Incapaz de esforço heróico — ao qual denigre —.

Em tudo, filho da obscuridade ou da sombra, e, como tal, em tensão congénita com a luz e seu deus, Apolo, a quem, porque sim (ôntico ditame), inda em cueiros, rouba os rebanhos.

Senhor dos rebanhos e das messes e, também, dispensador de bens e qualquer forma de riqueza, a um tempo que inimigo de toda a energia generosa, toda a lucidez mental, toda a coerência. Glutão (de comida, bens, notícias).

Os mesmos, enfim, engano, concupiscência e malícia. Que, trevas da alma, exerce sobretudo no seio da noite, seu reino.

Espírito da noite e guia dos mortos — ou guia no escuro —. O psico-pompo ou Seelensführer (Kerényi).

«Ciò che Ermete anima e domina è un mondo in tutto il senso del termino, ossia tutto un mondo, non un frammento qualsiasi di tutta la soma dell`esistenza.» (Ocorre-nos Dionysos.) «La sua vastità non vien più stabilita del desiderio umano, sibbene da una forma caratteristica di tutta l`esistenza. E si trova allora che questa sfera comprende buono e cattivo, riuscita e desilusione, alto e basso.» «È lo spirito di una maniera d`esistere, chi ritorna sempre di bel nuovo sotto le più diverse condizioni, ed accanto alla conquista conosce il dileguarsi di quella, accanto alla bontà la malvagità.» «Ogni vita conosce cosa sia cavalleria d`industria e pirateria, e ne vive assai piu di quel che crede.» «…un mondo nel dio ed il dio in tutto il mondo.» «Il più umano fra tutti gli dei.» (Um deus-todo-o-mundo…) Passos, relativos ao mais subtil e universal de Hermes-Mercúrio, que extractamos da aliciante versão italiana (Firenze, Nuova Italia, 3.ª edizione, 1955) do excelente livro de Walter Otto, Die Götter Griechenlands — cujas páginas sobre Ermete (Hermes) são deveras extraordinárias —. Recordar que, segundo Celso (Origenes, Contra Celso, VI, 22), nos sete níveis vitais, a que correspondem diversos metais, Mercúrio ocupa o quarto — o do ferro —.

4 — Págs. 140-141. Destaques nossos.

5 — «Vanes, dieux caracterisés par la richesse, la fécondité et la volupté, et les Ases, dieux de la grande magie et la force guerrière.» «Vanes: ces dieux que normalment se caractérisent par la prosperité et par un goût impérieux de la paix.» São dois concisos passos definitórios que, entre mil, encontramos num dos mais importantes livros de Dumézil, Mythe et Epopée I, Paris, Gallimard, 1968, respectivamente págs. 288 e 291.

6 — O que guarda cabal antinomia com o que no Romancero se exprime através da quadra famosa:

Mis arreos son las armas,

mi descanso el pelear,

mi cama las duras peñas,

mi dormir siempre velar.

7 — Além dos romances de cavalaria, importa lembrar todo um conjunto de obras que vão desde El Victorial, de Gutierre Diez de Games, e os Leal Conselheiro e Livro da Ensinança de bem cavalgar toda sela, de D. Duarte, até ao Cortegiano, de B. Castiglione, magnificamente recriado por Boscán, e o Enquiridion o Manual del Caballero Cristiano, de Erasmo, exemplarmente posto em castelhano pelo Arcediano de Alcor, passando pelo Tratado del Esfuerzo bélico-heróico de Palacios Rubios, as Epístolas familiares, o Reloj de Príncipes e Aviso de privados, de Fr. António de Guevara, e o Doctrinal de Caballeros, de Alonso de Cartagena, que por sua vez suscitam o Regimiento de Príncipes, de Gómez Manrique, e o Doctrinal de privados e Los proverbios de gloriosa doctrina y frutuosa enseñanza, de Iñigo López, para não retroceder às espécies, inda mais específicas, de Lulio e D. Juan Manuel, respectivamente o Libro del Orden de Caballeria e o Libro del Caballero y del Escudero. (…) Isto, na esfera das letras peninsulares, e sem contar, portanto, todos os regimentos e espelhos do cavaleiro e da cavalaria que têm no Ritterspiegel de Johannes Rothe (século XV) uma das suas melhores expressões. Em qualquer das obras indicadas se inculcam, num ou noutro grau, as condições ou qualidades morais do perfeito senhor, cavaleiro, cortesão, e se define a preparação guerreira como aquela que especificadamente lhe respeita. Escreveu-o, por todos Castiglione (na versão de Boscán): «Pero demás de la bondad, el substancial y principal aderezo del alma pienso yo que sean las letras, no embargante que los Franceses tengan solamente las armas en mucho.» «Pero escusado es deciros esto a vosotros que bien conoceis cuán gran engaño reciban los Franceses pensando que las letras embaracen las armas.» «Por cierto el que no siente el provecho que hay en las letras tampoco puede sentir la grandeza de la gloria por ellas conservada, y solamente mide la fama con la edad de un hombre o de dos, porque no puede tener memoria de más tiempo.» «Todavia será más seguro que, aunque conozca ser verdaderos los loores que le dan, los reciba con templanza y no los sufra así puramente sin más, ni los confiese sin alguna contradicíon, sino que moderadamente casi los niegue, mostrando siempre tener en efecto por su principal profesión la de las armas, y significando que todas las otras buenas calidades son por ornamento de aquéllas. Esto en especial se ha de hacer entre hombres de guerra, por no ser como aquellos que entre letrados quieren parecer guerreros y entre guerreros letrados.» (Il Cortegiano, Cap. IX, do Livro I, na versão castelhana — v., por exemplo, a edição recente de Bruguera, Libro Clássico, Barcelona, 1972 —, que corresponde às partes ou capítulos XLI-XLVI do original italiano — v. a edição da Unione Tipografico-Editrice Torinese, Classici Italiani, Torino, 1964 —. Os passos transcritos encontram-se, respectivamente, nos capítulos XLII, XLIII, idem, e XLIV do texto italiano.)

8 — Págs. 143-144. Destaques nossos. Onde se mostra uma série de elementos que constam identicamente deste passo de Jorge Ferreira de Vasconcelos, Aulegrafia, Acto III, Cena 6: «O bom galante, primeiramente há de ser liberal, se quer alcançar a vitória… paciente… discreto… secreto, & não vão glorioso para encubrir suas glórias (=grandes prazeres).» Passo que Marques Braga reproduz na sua edição de Gil Vicente que utilizamos. —Na sequência desta caracterização feita por Gil Vicente, verifica-se que galante assume o valor bifronte que inda hoje possui em Inglês, onde gallant e gallantry tanto respeitam a valentia, bravura e, portanto, valor guerreiro, quanto a gentileza. Duas faces do genuíno semblante aristocrático dos melhores tempos. O que supremamente nos explicam as obras novelísticas de Barbey d`Aurevilly e La Varende, em cujo espectro ingredencial ocupam essas faces o lugar da majestade.

9 — Página de que extractamos este parágrafo: «Los cavalleros, en la guerra, comen el pan com dolor; los biçios della son dolores e sudores: vn buen dia entre muchos malos. Pónense a todos los travaxos, tragan muchos miedos, pasan por muchos peligros, abenturan sus vidas a morir o vivir. Pan mohoso o vizcoho, biandas mal adovadas; a oras tienen, a oras no nada. Poco vino o no ninguno. Agua de charcos e de odres. Las cotas vestidas, cargados de fierro; los henemigos al ojo. Malas posadas, peores camas. La cama de trapos o de ojarascas; mala cama, mal sueño.» O que contrasta com o que se consigna no anterior: «Ca los de los ofiçíos comunes comen el pan folgando, visten ropas delicadas, manjares bien adovados, camas blandas, safumadas; héchándose seguros, levantándose sin miedo, fuelgan en buenas posadas com sus mugeres e sus hijos, e servidos a su voluntad, engordan grandes cerviçes, fazendo grandes barrigas, quiérense bien por hazerse bien e tenerse biçiosos. Qué galardón o qué honrra meresçen? No, ninguna.» (Conforme a edição de Juan Mata Carriazo, Madrid, Espasa-Calpe, 1940, pág. 42.) — Uma oposição entre o mundo cavaleiro e o mundo burguês (entre, neste caso, o guerreiro e o oficial comum) que, dando saltos com botas de sete séculos, encontramos, por exemplo, quer em Quevedo, La hora de todos, quer no nosso tempo, em La Varende, Saint-Simon et sa comédie humaine, (…) ou na introdução de Eugenio Asensio à sua edição da Eufrósina. Nestes casos, precisamente, entre o ímpeto e o estudo, ou entre a nobreza combatente e a burguesia legista e parlamentar, doutora até pela Universidade.

10 — Pág. 144.

11 — Idem.

12 — Ocorre-nos aquela passagem do Guzman de Alfarache (Primera Parte, Libro I, Cap. II): «Este caballero era hombre mayor, escupía, tosía, quejábase de piedra, riñon y urina.» Apesar de que, nas novelas de cavalaria, se admita o enamoramento profundo e vivo, a paixão até, não só de uma mas de muitas mulheres por homens já maduros — provectos na idade —, qual é o celebrado caso de Galvão quem, com seus setenta anos, desperta as trágicas fidelidades que, de modo paradigmático, patenteia La Mort le Roi Artu (séc. XIII), designadamente na Story of Sir Gawain and the lady of Beloé, trecho 174 na edição de Penguin Classics, 1975, cujo texto-matriz da versão inglesa é o estabelecido por Jean Frappier.

13 — Págs. 145-146. Destaques nossos.

14 — Págs. 147-148. Idem.

15 — O tempo passava placidamente, «quando Saturno dormia». (Podemos por no presente, e dizer passa e dorme.) Ocasião em que se congregam os deuses que formam do lado da paz ou, pelo menos, a aceitam (Júpiter, Mercúrio, Venus, a Lua, o Sol), incluído o mesmo Marte, uma vez que «suas forças repartia» (pág. 159) ou as não reunia para a guerra.

16 — Págs. 149-151. Destaques nossos.

17 — Pág. 153. Idem.

18 — Pág. 154. Idem.

19 — Págs. 153-155. Idem.

O Acidente

Porque estou preso é algo que ainda não consegui compreender. Ainda hoje, passadas umas semanas da decisão que me ditou “prisão domiciliária”, não consigo, sinceramente, compreender quais os alegados motivos ou fundamentos para tal medida.
Vou tentar explicar o que se passou comigo, sem prejuízo do chamado “segredo de justiça”, que abordarei mais à frente, e talvez assim alguém tenha a bondade de tentar ajudar-me a compreender esta situação, porque volto a dizer para mim continua tudo sem explicação evidente.

No dia 18 de Abril, pelas 7h da manhã, o domicílio da minha namorada, grávida, onde me encontrava, foi visitado por uma brigada de quatro agentes da Polícia Judiciária. Eram portadores de um mandado onde se lia estar a ser acusado de “discriminação racial” e “ofensas à integridade física qualificadas”. Fiquei na mesma, pois sabia não ter agredido ninguém, e portanto tal acusação ser falsa, e apesar de também não ter discriminado alguém sujeitei-me – que remédio – à subjectividade da acusação.

Mas era possível que alguém tivesse entendido alguma das manifestações que ajudei a organizar como “racistas”, como tem feito sucessivamente o Jerónimo de Sousa, tal como fez em Junho de 2005 aquando da manifestação contra a criminalidade no Martin Moniz. É que, a propósito da organização dessa manifestação, uma semana depois do chamado “arrastão”, por causa de uma queixa da FAR (Frente Anti-Racista), uma das organizações ligada ao PCP que têm feito os possíveis e impossíveis por ocultar e desculpar os suspeitos desse crime, também fui obrigado a ir às instalações da Polícia Judiciária para “prestar declarações como arguido, por via de uma queixa de racismo”.

Mas não. Desta vez as acusações eram outras, mas delas só consegui saber depois de muitas horas sentado numa cadeira nas instalações da Polícia Judiciária, quando, já depois da meia-noite, a Procuradora do Ministério Público me informou das suspeitas que sobre mim recaem, dizendo que estava a ser acusado de “discriminação racial ou religiosa”, com base no Artigo 240, e achei estranho porque nunca tendo agredido ninguém, muito menos de raça ou religião diferente, não tendo empresas ou cargos que me permitissem “discriminar” efectivamente alguém – como acontece, por exemplo, nas multinacionais a propósito das mulheres grávidas ou de pessoas obesas – tal acusação soava a “delito de opinião”, talvez por causa de uma das tais manifestações ou de um qualquer texto do PNR, mas não.

A “discriminação racial” prendia-se com meia-dúzia de pequenas frases – frases, soltas e descontextualizadas, não textos ou panfletos – retiradas de “um fórum da internet”, e que alegadamente eu teria proferido no meio de outras cinco mil mensagens, essas sim textos ou opiniões, que sendo assim também serão da minha autoria. Nem sequer me foi explicado em que contexto o teria escrito, em que dia o teria feito, ou sobre que assunto teria comentado. Eram meia-dúzia de pequenos excertos de frases que, segundo o entendimento da Procuradora, me obrigavam a ser presente, no dia seguinte, no Tribunal de Instrução Criminal.

Nem sequer serviu lembrar que vivemos num país onde a Constituição diz que “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento”, que tal direito pode ser exercido “através da imagem, palavra, ou qualquer outro meio”, e que “o exercício deste direito não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”. Nem sequer serviu dizer que, as tais frases, completamente descontextualizadas e assim apresentadas, poderiam até ser uma citação do que escreveu Pacheco Pereira na Revista Sábado, quando a propósito do chamado arrastão disse que “o contra-arrastão é a negação politicamente correcta de que haja problemas de criminalidade violenta e endémica nas grandes concentrações urbanas que têm como actores jovens negros da segunda geração”.

E, curiosamente, previu o professor que “dizer isto parece logo racismo, deve motivar o nosso comissário para as minorias étnicas a pedir mais desculpas públicas por se ter nomeado cor ou raça ou condição imigrante”. Mas enganou-se num “pormenor”, porque tais frases não motivam apenas os ditos “comissários das minorias”, que têm sido tudo menos santos nas acusações públicas proferidas contra o PNR, mas também os tais “inquisidores do politicamente correcto” que, só por acaso, têm o poder de decidir quem fica ou não fica preso em Portugal.

Entretanto, voltando ao ponto da situação, depois de saber que teria de ser presente a um Juiz é-me dito que ficaria detido e passaria a noite na prisão, fechado numa cela nas instalações da PJ, não fosse passar-me pela cabeça fugir de Portugal. Lembrei-me não poucas vezes daquilo que disse Adelino Caldeira a propósito do 25 de Abril: “disseram-me que estavam a fazer aquilo para que nunca mais alguém tivesse de sair de Portugal por causa daquilo que diz, escreve, ou pensa”. Nunca esta frase esteve tão presente na minha cabeça como durante aquela noite, passada no meio de muitas dezenas de selvagens que, durante a noite e manhã, iam anunciando a sentença dos nacionalistas encarcerados nas masmorras do regime: “vamos matar; vocês vão morrer!”

Além do PREC e de Arnaldo Matos, lembrei-me da Albânia, de Guantanamo, e da União Soviética, e só me lembrei do Estado Novo já depois de ter chegado a casa, quando numa entrevista de Mário Crespo, Saldanha Sanches – muito a propósito… – dizia qualquer coisa como “passados mais de 30 anos é altura de se parar com os exageros sobre o periodo anterior ao 25 de Abril”. Dizia ainda que “naquela altura prendiam-se pessoas apenas por estarem contra o regime” e interroguei-me do porquê de ter referido “naquela altura”, quando hoje se passa precisamente o mesmo, ou pior, se à perseguição política juntarmos o cinismo e silêncio dos auto-denominados “defensores da liberdade de expressão”.

Voltando ao TIC, e depois de ter explicado novamente o tal episódio, foi-me informado que ficaria… em prisão domiciliária! Então por alma de quem é que uma pessoa que não comete qualquer crime terá de ficar contente por ficar preso em casa?!

Os motivos talvez Deus saiba, porque nem sequer um papel a informar-me da decisão me foi entregue, quanto mais dos seus motivos. Pensa o advogado de defesa que tem a ver com a moldura penal do tal Artigo 240 – que prevê pena de 1 a 8 anos – e que, por isso, o alegado crime onde me enquadro, por alegadamente ter escrito meia-dúzia de mensagens é considerado “grave”.

Pelos vistos mais grave que assassinar uma mulher grávida, alcoolizado, e fugir, pois neste caso o suspeito foi mandado para casa nem com apresentações. E mais grave do que agredir polícias, destruir lojas, e andar na rua com “cocktails molotov” e “very-lights”, porque também esses foram mandados para casa com Termo de Identidade e Residência. Extrema-esquerda, pois claro.

E quanto ao centro, os suspeitos da Casa Pia, e às acusações de violações de menores, então nem se fala, porque isso é terramoto que já deu o que tinha a dar e os suspeitos além de soltos já começam a aparecer de novo nos eventos do social, sorridentes e como se nada fosse…

“Agora vá para casa que depois vão lá meter-lhe uma pulseira, talvez durante a próxima semana, e entretanto não pode falar com ninguém ligado ao processo”, disse-me a funcionária do Tribunal. “Mas eu nem sequer sei quem são os arguidos, já que desde ontem que estou fechado ora em gabinetes ora em prisões e, segundo me disseram os guardas, são mais de cinquenta as pessoas envolvidas”, expliquei, pedindo de seguida “pelo menos uma lista dos arguidos, para saber com quem posso ou não falar”, ao que a funcionária respondeu “olhe, não fale com ninguém ligado a estas coisas”. A minha dúvida, além do que seria “estas coisas”, é se poderia falar com os representantes dos grandes portugueses, já que estes também estavam de alguma forma ligados “a estas coisas”, mas calculo que a Odete Santos não esteja incluída “nestas coisas” senão pela ligação ideológica às acusações.

Entretanto lá fui para casa, pelo meu próprio pé, o que é um bocado estranho para quem aguarda que lhe seja colocada uma pulseira electrónica, já que o perigo de fuga que esse aparelho – imaginado talvez por Orwell – aparentemente visa prevenir deixava assim de fazer qualquer sentido. Saíndo do Tribunal pelo próprio pé, e tendo a dita prometida para daí “a uma semana”, teria tempo suficiente para comprar um bilhete idêntico ao de Fátima Felgueiras ou do Padre Frederico, mas não, vim para casa assistir aos programas que, recorrentemente e nesta altura do ano, lembram o 25 de Abril; liberdade, liberdade, liberdade, muita liberdade, e a tal frase de Adelino Caldeira a passar repetidamente no Canal História.

Há coisas do Diabo, ocorreu-me pensar – mas não pensei, não fosse estar a cometer outro crime de discriminação, desta vez religioso…

Entretanto meto-me a ler os livros que a PJ não apreendeu, já que do meu “Triunfo dos Porcos” só lhe posso ver a capa nas imagens que acompanham as notícias que relatam o material apreendido na tal mega-operação, dos quais pelo menos sobrou um sobre a morte de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa, esse tal “acidente” nunca desvendado desde Dezembro de 1980.

Durante o silêncio a que fui restringido, porque supostamente há cinquenta pessoas de que sou camarada e amigo mas com os quais não posso comunicar, dou uma espreitadela nas “notícias” que fizeram manchete naqueles dois dias passados na prisão.

Não consigo deixar de pensar no chamado “segredo de justiça” – que me impede(?) por exemplo de consultar o processo de acusação de que estou a ser alvo – e de me lembrar da exposição pública de fotografias e pormenores do processo a que nem eu nem os advogados de defesa tiveram acesso. Nem nas sensacionalistas reportagens algum jornalista teve o cuidado de referir, por exemplo, que uma das pessoas que foram detidas faz tiro desportivo há dezenas de anos, e que as armas apresentadas como “apreensões” estão devidamente registadas e, portanto, serão muito provavelmente devolvidas ao seu proprietário.

Até a busca à sede do PNR, à procura de “armas ou droga”, como foi aludido por diversos jornais, tresanda a perseguição política e pré-condenação, ideológica. Alguém se lembra de procedimento semelhante com qualquer outro partido?

Ou alguém reparou nas medidas de coacção impostas aos elementos de extrema-esquerda que destruíram lojas, agrediram polícias, e que se preparavam para atacar a sede do PNR, conforme a própria polícia referiu ter conhecimento, com “cocktails molotof” e “very-lights”? Saíram todos com Termo de Identidade e Residência, ou seja nem sequer terão de se apresentar periodicamente, tal como todos os nacionalistas que tiveram a sorte de não ficar em prisão preventiva ou domiciliária.

“Heróis” de extrema-esquerda que foram recebidos efusivamente à saída do Tribunal por um bando de escumalha encapuçada que nos últimos anos se entretem a fazer ameaças de morte aos militantes e dirigentes do PNR. Ver aquelas imagens lembrou-me a Procuradora, dentro do TIC, aos berros com os guardas da PSP daquele Tribunal exigindo que “os nacionalistas presentes na rua fossem imediatamente tirados dali, senão tenho de chamar o Corpo de Intervenção”. Nenhum deles tinha passa-montanhas, ou símbolos anarquistas, devia ser esse “o problema”…

Termo de Identidade e Residência esse que, dias antes da “mega-operação”, foi aplicado ao imigrante do Bangladesh – e aqui, ao referir “imigrante”, sei que aos olhos dos “tolerantes democratas da liberdade de expressão” estou a cometer um crime hediondo e bem mais grave que a própria situação em si! – que circulava embriagado, atropelou uma mulher grávida, matou-a, e fugiu! Crime grave? Não, mero “acidente”, coitado.

Nem interessa que não haja verdadeiras vítimas neste mega-processo, que não os próprios suspeitos, ao contrário, por exemplo, do bebé de 3 meses que morreu às mãos das amnistiadas FP-25, o que interessa é fazer a condenação prévia na opinião pública que justifique uma efectiva perseguição política aos nacionalistas.

Depois, mesmo que se fale em “atentado”, a maioria há-de olhar para o lado, ignorando propositadamente este verdadeiro ataque à liberdade de expressão e opinião, e há os que se encarregarão de insistir na versão “do acidente”, tal como os tiros na nuca das FP25 ou o caso Camarate, tudo acidentes está claro…

Vasco Leitão

Revolução Conservadora, forma católica e “ordo aeternus” romano

A Revolução Conservadora não é somente uma continuação da «Deutsche Ideologie» romântica ou uma reactualização das tomadas de posição anti-cristãs e helenistas de Hegel (anos 1790-99) ou uma extensão do prussianismo laico e militar, mas tem também o seu lado católico romano. Nos círculos católicos, num Carl Schmitt por exemplo, como nos seus discípulos flamengos, liderados pela personalidade de Victor Leemans, uma variante da Revolução Conservadora incrusta-se no pensamento católico, como sublinha justamente um católico de esquerda, original e verdadeiramente inconformista, o Prof. Richard Faber de Berlim. Para Faber, as variantes católicas da RC renovam não com um Hegel helenista ou um prussianismo militar, mas com o ideal de Novalis, exprimido em Europa oder die Christenheit: este ideal é aquele do organon medieval, onde, pensam os católicos, se estabeleceu uma verdadeira ecúmena europeia, formando uma comunidade orgânica, solidificada pela religião.

Depois do retrocesso e da desaparição progressiva deste organon vivemos um apocalipse, que se vai acelerando, depois da Reforma, a Revolução francesa e a catástrofe europeia de 1914. Desde a revolução bolchevique de 1917, a Europa, dizem estes católicos conservadores alemães, austríacos e flamengos, vive uma Dauerkatastrophe. A vitória francesa é uma vitória da franco-maçonaria, repetem. 1917 significa a destruição do último reduto conservador eslavo, no qual haviam apostado todos os conservadores europeus desde Donoso Cortés( que era por vezes muito pessimista, sobretudo quando lia Bakunine). Os prussianos haviam sempre confiado na aliança russa. Os católicos alemães e austríacos também, mas com a esperança de converter os russos à fé romana. Enfim, o abatimento definitivo dos “estados” sociais, inspirados na época medieval e na idade barroca (instalados ou reinstalados pela Contra-Reforma) mergulha os conservadores católicos no desespero. Helena von Nostitz, amiga de Hugo von Hoffmannstahl, escreve «Wir sind am Ende, Österreich ist tot. Der Glanz, die Macht ist dahin» [« Estamos no fim, a Áustria está morta. O Esplendor e o Poder desapareceram»].

Num tal contexto, o fascismo italiano, contudo saído da extrema-esquerda intervencionista italiana, dos meios socialistas hostis à Áustria conservadora e católica, figura como uma reacção musculada da romanidade católica contra o desafio que lança o comunismo a leste. O fascismo de Mussolini, sobretudo depois dos acordos de Latran, recapitula, aos olhos destes católicos austríacos, os valores latinos, virgilianos, católicos e romanos, mas adaptando-os aos imperativos da modernidade.

É aqui que as referências católicas ao discurso de Donoso Cortés aparecem em toda a sua ambiguidade: para o polemista espanhol a Rússia arriscava converter-se ao socialismo para varrer pela violência o liberalismo decadente, como teria conseguido se tivesse mantido a sua opção conservadora. Esta evocação da socialização da Rússia por Donoso Cortés permite a certos conservadores prussianos, como Moeller van den Bruck, simpatizar com o exército vermelho, para parar a Oeste os exércitos ao serviço do liberalismo maçónico ou da finança anglo-saxónica, ainda mais porque depois do tratado de Rapallo(1922), a Reichswehr e o novo exército vermelho cooperam. O reduto russo permanece intacto, mesmo se mudou de etiqueta ideológica.

Hugo von Hoffmannstahl, em Das Schriftum als geistiger Raum der Nation [As cartas como espaço espiritual da Nação] utiliza pela primeira vez na Alemanha o termo “Revolução Conservadora”, tomando assim o legado dos russos que o haviam precedido, Dostoievski e Yuri Samarine. Para ele a RC é um contra-movimento que se opõe a todas as convulsões espirituais desde o século XVI. Para Othmar Spann, a RC é uma Contra-Renascença. Quanto a Eugen Rosenstock( que é protestante), escreve: «Um vorwärts zu leben, müssen wir hinter die Glaubensspaltung zurückgreifen» [Para continuar a viver, seguindo em frente, devemos recorrer ao que havia antes da ruptura religiosa]. Para Leopold Ziegler (igualmente protestante) e Edgard Julius Jung (protestante), era preciso uma restitutio in integrum, um regresso à integralidade ecuménica europeia, Julius Evola teria dito: à Tradição. Eles queriam dizer por aquilo que os Estados não deviam mais opor-se uns aos outros mas ser reconduzidos num “conjunto potencializador”.

Se Moeller van den Bruck e Eugen Rosenstock actuam em clubes, como o Juni-Klub, o Herren-Klub ou em círculos que gravitam em torno da revista de sociologia, economia e politologia Die Tat, os que desejam manter uma ética católica e cuja fé religiosa subjuga todo o comportamento, reagrupam-se em “círculos” mais meditativos ou em ordens de conotação monástica. Richard Feber calcula que estas criações católicas, neo-católicas ou para-católicas, de “ordens”, se efectuaram a 4 níveis:

1)No círculo literário e poético agrupado em torno da personalidade de Stefan George, aspirando a um “novo Reich”, isto é, um “novo reino” ou um “novo éon”, mais do que a uma estrutura política comparável ao império dos Habsbourg ou ao dos Hohenzollern.

2)No “Eranos-Kreis”( Círculo Eranos) do filósofo místico Derleth, cujo pensamento se inscreve na tradição de Virgílio ou Hölderlin, colocando-se sob a insígnia de uma “Ordem do Christus- Imperator”.

3)Nos círculos de reflexão instalados em Maria Laach, na Renânia-Palatinado, onde se elaborava uma espécie de neo-catolicismo alemão sob a direcção do teólogo Peter Wust, comparável, em muitos aspectos, ao “Renouveau Catholique” de Maritain na França (que foi próximo, a dado momento, da Acção Francesa) e onde a fé se transmitia aos aprendizes particularmente por uma poesia derivada dos cânones e das temáticas estabelecidas pelo “Circulo” de Stefan George em Munique-Schwabing desde os anos 20.

4)Nos movimentos de juventude, mais ou menos confessionais ou religiosos, particularmente nas suas variantes “Bündisch”, bom número de responsáveis desejavam introduzir, por via das suas ligas ou das suas tropas, uma “teologia dos mistérios”.

As variantes católicas ou catolizantes, ou pós-católicas, preconizaram então um regresso à metafísica política, no sentido em que queriam uma restauração do “Ordo romanus”, “Ordem romana”, definida por Virgílio como “Ordo aeternus”, “ordem eterna”. Este catolicismo apelava à renovação com esse “Ordo aeternus” romano que, na sua essência, não era cristão mas a expressão duma paganização do catolicismo, explica-nos o cristão católico de esquerda Richard Faber, no sentido em que, neste apelo à restauração do “Ordo romanus/aeternus”, a continuidade católica não é já fundamentalmente uma continuidade cristã mas uma continuidade arcaica. Assim, a “forma católica” veicula, cristianizando-a (na superfície?), a forma imperial antiga de Roma, como assinalou igualmente Carl Schmitt em Römischer Katholizismus und politische Form (1923). Nessa obra, o politólogo e jurista alemão lança de alguma maneira um duplo apelo: à forma (que é essencialmente, na Europa, romana e católica, ou seja, universal enquanto imperial e não imediatamente enquanto cristã) e à Terra (esteio incontornável de toda a acção política), contra o economicismo volúvel e hiper-móvel, contra a ideologia sem esteio que é o bolchevismo, aliado objectivo do economicismo anglo-saxónico.

Para os proponentes deste catolicismo mais romano que cristão, para um jurista e constitucionalista como Schmitt, o anti-catolicismo saído da filosofia das Luzes e do positivismo cienticista( referências do liberalismo) rejeita de facto esta matriz imperial e romana, este primitivismo antigo e fecundo, e não o eudemonismo implícito do cristianismo. O objectivo desta romanidade e desta “imperialidade” virgiliana consiste no fundo, queixa-se Faber, que é um anti-fascista por vezes demasiado militante, em meter o catolicismo cristão entre parênteses para mergulhar directamente, sem mais nenhum derivativo, sem mais nenhuma pseudo-morfose (para utilizar um vocábulo spengleriano), no “Ordo aeternus”.

Na nossa óptica este discurso acaba ambíguo, porque há confusão permanente entre Europa e Ocidente. Com efeito, depois de 1945, o Ocidente, vasto receptáculo territorial oceânico-centrado, onde é sensato recompor o “Ordo romanus” para estes pensadores conservadores e católicos, torna-se a Euroamérica, o Atlantis: paradoxo difícil de resolver, porque como ligar os princípios “térreos” (Schmitt) e os da fluidez liberal, hiper-moderna e economicista da civilização “estado-unidense”?

Para outros, entre o Oriente bolchevizado e pós-ortodoxo e o Hiper-Ocidente fluido e ultra-materialista, deve erguer-se uma potência “térrea”, justamente instalada sobre o território matricial da “imperialidade” virgiliana e carolíngia, e esta potência é a Europa em gestação. Mas com a Alemanha vencida, impedida de exercer as suas funções imperiais pós-romanas uma translatio imperii (translação do império) deve operar-se em beneficio da França de De Gaulle, uma translação imperii ad Gallos, temática em voga no momento da reaproximação entre De Gaulle e Adenauer e mais pertinente ainda no momento em que Charles De Gaulle tenta, no curso dos anos 60, posicionar a França “contra os impérios”, ou seja, contra os “imperialismos”, veículos da fluidez mórbida da modernidade anti-política e antídotos para toda a forma de fixação estabilizante (NdT. Daqui presume-se uma distinção entre imperialismo e imperialidade, daí o uso dos dois conceitos).

Se Eric Voegelin tinha teorizado um conservantismo em que a ideologia derivava da noção de “Ordo romanus”, ele colocava o seu discurso filosófico-político ao serviço da NATO, esperando deste modo uma fusão entre os princípios “fluidos” e “térreos” (NdT. naturalmente esta dicotomia que o autor usa recorrentemente no texto é uma referência à tradicional oposição entre ordenamentos marítimos e terrestres) , o que é uma impossibilidade metafísica e prática. Se o tandem De Gaulle-Adenauer se referia também, sem dúvida, no topo, a um projecto derivado da noção de “Ordo aeternus”, colocava o seu discurso e as suas práticas, num primeiro momento (antes da viagem de De gaulle a Moscovo, à América Latina e antes da venda dos Mirage à Índia e do famosos discursos de Pnom-Penh e do Quebeque), ao serviço de uma Europa mutilada, hemiplégica, reduzida a um “rimland” atlântico vagamente alargado e sem profundidade estratégica. Com os últimos escritos de Thomas Molnar e de Franco Cardini, com a reconstituição geopolítica da Europa, este discurso sobre o “Ordo romanus et aeternus” pode por fim ser posto ao serviço de um grande espaço europeu, viável, capaz de se impor sob a cena internacional. E com as proposições de um russo como Vladimir Wiedemann-Guzman, que percepciona a reorganização do conjunto euro-asiático numa “imperialidade” bicéfala, germânica e russa, a expansão grande-continental está em curso, pelo menos no plano teórico. E para terminar, parafraseando De Gaulle: A estrutura administrativa acompanhá-la-á?

Robert Steuckers

A imigração não pode financiar o envelhecimento populacional

O aumento da esperança de vida e a diminuição das taxas de natalidade estão a conduzir a grandes problemas fiscais na Europa. Sem mudanças fundamentais o aumento no número relativo de pessoas idosas e o crescimento mais lento da força de trabalho irá fazer subir substancialmente os gastos governamentais com pensões e serviços de saúde.

Uma reacção comum a este problema é a defesa de mais imigração. Os impostos pagos por estes novos imigrantes ajudariam a financiar os benefícios dos idosos. Embora exista desconforto generalizado com algumas das consequências sociais do aumento da imigração, muitos concluíram que essa é a única maneira de evitar um grande aumento das taxas de imposto ou um corte nos benefícios.

Contudo, uma pequena análise mostra que mesmo um aumento muito grande da imigração teria um impacto muito pequeno na receita requerida para lidar com o envelhecimento populacional. Grande parte dos impostos pagos pelos novos trabalhadores seria necessária para financiar os benefícios governamentais que eles e as suas famílias consomem – especialmente em cuidados de saúde e educação. É preciso, assim, perguntar qual o benefício líquido criado pela imigração e como é que essa receita adicional se relaciona com o aumento do número de imigrantes.

Aqui ficam alguns cálculos simples para Espanha. A análise seria praticamente a mesma para outros destacados países europeus. As projecções da ONU mostram que a população espanhola permanecerá essencialmente inalterada nos próximos 50 anos enquanto o número de pessoas em idade activa por aposentado cairá de 4.5 hoje para menos de 2 em 2050. Com mais aposentados e menos trabalhadores, estima-se que os custos do programa de pensões subam dos actuais 8.4% do PIB para 15,7% em 2050.

Fala-se muito em Espanha dos possíveis ganhos fiscais do aumento da imigração. Considere-se o impacto potencial de uma entrada de uma só vez em Espanha de 2 milhões de novos trabalhadores, equivalente a um aumento de 10% na força de trabalho espanhola. Se este aumento de imigração estivesse limitado apenas àqueles que entram no mercado de emprego, isso seria equivalente a um incremento de 54% da população estrangeira em Espanha. Adicionar os seus familiares tornaria o incremento ainda maior.

Um crescimento de mais de 50% no número de estrangeiros em Espanha poderia ter um grande impacto nas condições sociais e políticas. O que significaria em termos de rendimento líquido adicional? Uma vez que os imigrantes geralmente ganham menos que os trabalhadores autóctones, uma subida no número de trabalhadores estrangeiros igual a 10% da força de trabalho aumentaria a remuneração total do trabalho em 8% ou menos. Uma vez que os salários são apenas cerca de 75% do PIB, uma subida de 8% nos salários brutos equivaleria a uma subida de 6% no PIB.

Pelo menos metade dos 6% adicionais do PIB seria consumida pelos imigrantes e as suas famílias. Uma fracção adicional seria usada pelo governo para financiar benefícios para eles. Logo, o rendimento adicional disponível para pagar benefícios à população original espanhola seria de apenas cerca de 2% do PIB ou menos.

Estes 2% do PIB são muito pouco em relação ao futuro problema fiscal. Os gastos governamentais em pensões e cuidados de saúde são agora de 14% do PIB e estima-se que subirão para 24% em 2050. Os 2% do PIB que resultariam de um aumento de mais de 50% na população estrangeira financiariam, então, menos de 10% dos benefícios de saúde e pensões estimados.

O aumento da imigração providenciaria, adicionalmente, apenas um alívio temporário para um problema fiscal permanente. O envelhecimento da população espanhola e o crescimento mais lento da força de trabalho persistirá no longo prazo. Os imigrantes suplementares, na próxima década, providenciariam temporariamente um aumento da receita líquida mas receberiam eventualmente pensões de reforma e cuidados de saúde que absorvem o adicional da receita de impostos. Seria necessário um aumento continuado no número de imigrantes para alcançar até a relativamente pequena receita adicional que foi descrita.

Se este uso do crescimento da imigração para aumentar a receita no curto-prazo é ou não um trade-off favorável é uma decisão que cada país deve tomar. Os EUA e o Canadá, com a sua história de imigração e heterogeneidade demográfica, podem decidir que a imigração continuada é menos problemática do que muitos países europeus.

Podem até existir razões para defender o aumento da imigração. Os novos trabalhadores passariam a ter um nível de vida melhorado, eles e os seus filhos. Eles e os seus descendentes podem contribuir para os seus novos países de muitas formas. Mas seria errado advogar o aumento da imigração como necessário para lidar com as consequências fiscais do envelhecimento populacional, ou como meio para evitar futuros grandes aumentos de impostos ou reduções de benefícios.

A única maneira de evitar ou taxas de imposto significativamente mais altas ou rendimentos de reforma substancialmente menores é mudar de um sistema financiado por impostos para um que complemente os benefícios financiados dessa forma com um aumento da poupança e do investimento. Não é demasiado tarde para começar uma transição de um sistema de pay-as-you-go para um sistema misto, mas será progressivamente mais difícil fazê-lo à medida que a população envelhece.

Martin Feldstein,chairman of the Council of Economic Advisers na Presidência de Ronald Reagan e professor em Harvard, in The Financial Times, 13 de Dezembro de 2006

Metropolis

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«Já terminei a minha obra. Criei uma máquina à imagem do homem que nunca se cansa nem comete erros. A partir de agora já não precisaremos de trabalhadores humanos. Não valeu a pena perder uma mão para poder criar os trabalhadores do futuro? A máquina humana! Dê-me outras 24 horas e entregar-lhe-ei uma máquina que ninguém será capaz de diferenciar de um ser humano» Rotwang a Fredersen

O argumento

No ano 2026, debaixo das opulências e aparências da cidade de Metropolis, os trabalhadores mecanizados, escravizados, sofrem os ritmos de desumanas decadências. Estes desafortunados desenvolvem o seu trabalho no interior da terra, a partir do décimo nível subterrâneo. Ali não chega nem o sol nem o ar puro, mas o seu esforço esgotante, obscuro e anónimo, garante o elevado nível de vida dos habitantes da superfície. Nas profundezas a máquina destruiu o humano. As máquinas dominam tudo e ocupam um lugar preponderante na sociedade. Não há humanidade nas profundezas, só escravidão e submetimento à tirania da máquina. Não existem emoções, nem tensão, nem criatividade, somente uma rotina esgotante, sem matizes, cinzenta, triste. O ser humano das profundezas é um ser abatido e esgotado. Pelo contrário, na superfície reina o luxo, o bem-estar e a opulência. Em edifícios altos e praças espaçosas vivem os privilegiados. A casta dos poderosos pode manter o seu nível de vida graças ao sacrifício dos escravos.

Esta cidade tem um dono todo-poderoso, Fredersen. Um homem duro, implacável. Frio e calculista. A sua tirania induz os trabalhadores a sublevar-se mas uma jovem, Maria, tenta tranquilizá-los e promete-lhes que um dia, não longínquo, reinará o amor. Mas não há nada a fazer, a capacidade de sacrifício dos trabalhadores chegou ao limite e só a revolta pode assegurar a libertação, ou a morte.

Freder, o filho de Fredersen, um dia, como o Buda ao sair do seu retiro ideal, desce aos subterrâneos, cuja existência ignorava, acompanhado por Maria, que havia encontrado. Maria desperta-lhe uma extraordinária paixão. A partir desse encontro Freder tentará libertar os escravos mas o seu pai não pode tolerar esta relação e por isso contrata Rotwang, um cientista enlouquecido que construirá um robô com os mesmos traços de Maria, para terminar a revolta e recuperar o seu filho.

O robô causará uma crise na cidade subterrânea, destruirá os ensinamentos de Maria e substitui-los-á por ideias de vingança, luta de classes, revolta e saque. O robô consegue propagar o ódio entre os trabalhadores, mas, por fim, Freder e Maria conseguem denunciar a fraude e o robô, que acabará destruído pelos trabalhadores. A revolta provoca a inundação da cidade e a catástrofe. Em face dos factos alguns trabalhadores escravos compreendem a situação: foram enganados pela falsa Maria, a “bruxa”, perseguem-na e detêm-na, queimam-na, e é justamente nesse momento que entendem o que ocorreu: o revestimento do robô arde e deixa em evidencia o aspecto interior, metálico e frio, da falsa Maria. Nesse momento Rotwang sente-se perdido, sabe que quando os trabalhadores lhe atribuírem a ele a autoria do robô o perseguirão. A sua única possibilidade de sobreviver é guardar um ás na manga. Assim, decide sequestrar a verdadeira Maria, mas esta acaba libertada por Freder.

Freder luta contra Rotwang, que morre ao cair do campanário da catedral. O amor triunfa sobre a mecânica, o coração impõe-se ao artificioso. O filho do proprietário e a pobre trabalhadora fazem triunfar o seu amor por cima da sua origem social. Inclusive, à vista dos factos consumados, o próprio Fredersen aceita a nova situação, resignado. Maria pode predicar de novo a mensagem de paz e diz: «Não pode haver entendimento entre as mãos e o cérebro se o coração não actua como mediador».

Enquanto isso, à superfície, Fredersen é informado do que está a ocorrer nas profundezas e decide descer e visitá-las. Quando encontra o seu filho aceita a mão que este lhe estende. As classes antagónicas reconciliam-se com este gesto simples.

Metropolis e o expressionismo

Metropolis é uma obra tardia em relação às grandes obras expressionistas. É expressionista mas também é algo mais. Contém elementos novos, desconhecidos até esse momento. O ambiente arquitectónico da cidade não é tão angustiante e torturante como o de “Das Cabinet des Dr. Caligari” e muito menos, desde logo, do que em “Der Golem”. Mas, em qualquer caso, a película foi rodada segundo critérios expressionistas aos quais se somou o particular empenho de Lang e a predisposição da sua equipa para a realização de efeitos especiais que foram empregados, pela primeira vez, de forma sistemática no cinema. De entre todos os personagens Rotwang, o cientista enlouquecido, é, sem dúvida, o personagem mais expressionista do filme.

Trata-se de uma película maniqueísta, como todo o cinema expressionista. A dualidade entre o mundo das profundezas e o mundo da superfície, entre amos e escravos, entre bem e mal, é perfeitamente reflectida no seu conteúdo ético pelos claros-escuros, os contrastes e a gama de cinzentos utilizados.
Eugen Schweffton, artífice da maioria destes truques, enamorado da art déco, chegou a modificar espelhos, retirando-lhes a camada de mercúrio, a situá-los frente ao cenário e filmar alguma cena com personagens reais e o cenário, formado por maquetas reduzidas, reflectido no que restava do mercúrio. Tratavam-se de truques simples mas não por isso menos imaginativos, especialmente naquela época. Metropolis, não o esqueçamos, foi filmado nos primórdios do cinema quando ainda estava muito longe de alcançar a sua plenitude.

Os cenários são espectaculares. Os edifícios altos, as fábricas sombrias, o imenso relógio que marca obsessivamente as horas, as grutas subterrâneas que transmitem directamente o desespero dos escravos do subsolo.
De qualquer forma, Metropolis é expressionista especialmente por 3 conteúdos: a situação angustiante que se percebe desde os primeiros fotogramas e que, longe de diminuir, vai aumentando em cada cena, a sobreactuação dos actores, própria do cinema mudo mas ressaltada pelo ambiente gerado pelo expressionismo, e, finalmente, pela essência do guião, onde o fantástico se une ao terrifico.

É possível, ademais, apreciar em boa parte do cinema expressionista uma crítica social, reflexo do afundamento moral da Alemanha weimariana. Esta crítica torna-se exasperada em Metropolis. Neste sentido a mensagem moral da película é muito mais directa do que a de “Das Cabinet des Dr. Caligari”, “Der Golem” ou “Nosferatu”. Trata-se de um filme em que fica clara a crítica aos mecanismos de produção, ao empobrecimento dos trabalhadores e ao enriquecimento sem limite dos privilegiados.

Metropolis e a mensagem da época

Trata-se de uma película pré-fascista? A Lang não lhe interessava a política. A sua amante e guionista, Thea von Harbou, foi militante nacional-socialista desde as primeiras horas. Assim há que considerar que Lang estava em certa medida influenciado pelas ideias da sua esposa. Sendo Thea militante do partido nacional-socialista há um fundo em Metropolis que está em sintonia com a ideologia hitleriana.

Contrariamente ao que se tem tendência a pensar, o hitlerismo realizou uma crítica implacável ao modo de produção capitalista, que conseguiu penetrar nas classes trabalhadoras alemãs. Sabe-se que as Secções de Assalto hitlerianas, eram chamadas “secções bistec”, vermelhas por dentro castanhas por fora. Estes agrupamentos activistas estavam formados por antigos soldados da frente e ex-militantes comunistas passados ao hitlerismo. Não foi raro que Hitler e os demais ideólogos do partido tivessem enfatizado a crítica ao capitalismo, sobretudo quando boa parte dos capitalistas do seu tempo, para cúmulo, eram judeus, a besta negra do nacional-socialismo.

Mas, diferentemente da crítica marxista, o nacional-socialismo, denunciando a exploração capitalista, não questiona a divisão de classes. Isso mesmo ocorre em Metropolis. A mensagem da película é que o “coração”, representado por Maria, deve mediar entre as “mãos dos explorados” e o “cérebro dos exploradores”. O “mediador” entre as classes é o elemento novo introduzido na película e desconsiderado pelo marxismo. Neste sentido Metropolis é um filme que, se não é fascista, é, desde logo, próximo do fascismo, mais do que de qualquer outra ideologia política. E assim o devem ter visto as hierarquias nacional-socialistas, ainda na oposição, quando, na possibilidade de aceder ao poder, ofereceram a Lang a direcção da UFA.

Mas há outro elemento simbólico não menosprezável. “Maria” tem um duplo rosto: por uma parte predica amor e compreensão entre as classes, e por outra parte é uma agitadora social, a “Maria robô”. Esta última é destruída e injuriada como uma amostra da perversão do seu criador, Rotwang. A “Maria robô” é filha dos privilegiados, isto é, dos capitalistas. E isto encaixa de uma maneira absolutamente exacta com a crítica nacional-socialista da produção capitalista. Os sectores mais simplistas do partido nazi defendiam que os agitadores comunistas e os capitalistas tinham uma mesma origem étnica: eram, simplesmente, judeus. Mas outros sectores do partido elaboraram doutrinas muito mais sofisticadas sobre a identidade marxismo-capitalismo. O próprio fundador da Falange Espanhola defendia que os excessos do capitalismo deram lugar ao marxismo, como sucessão dialéctica. Os nazis pensavam exactamente isso. Na parábola de Metropolis toda esta teoria acaba genialmente dramatizada na agitadora “Maria robô”, surgida do malévolo engenho de Rotwang.

Há algo de crítica à tecnologia (e, muito mais) à mecanização mas também um aceso elogio da máquina. A máquina deixa de ser benéfica para o ser humano quando, de um meio para alcançar um fim, o progresso, passa a ser um meio para escravizar. Se nos anos 20 houve um movimento estético-político que defendeu teses parecidas esse foi o futurismo que, pouco tempo depois de lançar o seu manifesto, convergiu com o fascismo.

Metropolis e Fritz Lang

Não foi uma fita fácil de realizar. Foi uma das primeiras superproduções da história do cinema: a filmagem durou quase um ano (entre 22 de Maio de 1925 e 30 de Outubro de 1926), participaram 36 000 extras, dos quais a 7000 rapou-se-lhes a cabeça para uma cena de apenas 7 segundos. O orçamento foi invulgar para a época (cinco milhões de marcos), a projecção prolongou-se durante 3 horas. A película estreou-se a 10 de Janeiro de 1927. O seu êxito foi moderado. Talvez a película fosse demasiado longa e densa para a época.

Não foi, desde logo, a fita que mais benefícios económicos proporcionou a Lang mas sim a fita que, por si mesma, colocou o seu director num lugar de eleição na história do cinema. Dado que Metropolis não foi um êxito económico Lang fundou a sua própria produtora, “Fritz Lang Gesselschaft”, rodando nos dois anos seguintes duas películas menores, “Spione”( Os Espiões) e “Frau mi Mond”( A Mulher na Lua). Ambas são facilmente acessíveis em formato DVD.

“Os Espiões” é um filme realizado com ideias já presentes na séries sobre o Doutor Mabuse. A variante é que surge o tema do amor entre o agente enviado para liquidar a organização e uma das suas pertencentes. Na “Mulher na Lua” Lang explora uma fusão entre o género negro e a ficção científica, a que se junta também uma história de amor entre astronautas perdidos na lua. Nesta fita Lang volta aos cenários grandiloquentes mas descuida o guião. O resultado é um filme incoerente e progressivamente aborrecido. No entanto, também passou à história por ter sido a última película muda de Lang.

Nos anos 90 Metropolis foi resgatado das cinematecas e restaurado. Giorgio Moroder realizou uma versão musical, com as imagens originais coloridas, que limitou a duração do filme a apenas 83 minutos. Versões posteriores em DVD regressaram à duração original e à montagem de Lang. Na realidade o intento de Moroder não era absurdo. Há algo em Metropolis que remete para a estética do videoclip tanto como para o estilo expressionista.

Este estilo chegou ao cinema moderno através de Metropolis e é facilmente reconhecível em outras fitas de ficção modernas como “Blade Runner”( de Ridley Scott) ou “2001, Odisseia no Espaço”( de kubrick). A cena da valsa na estação espacial evoca a visão de Metropolis sobrevoada por aviões, o ambiente sinistro das catacumbas onde vivem os subhumanos remete directamente para o ambiente angustiante e opressivo em que os robôs de “Blade Runner” vão sendo liquidados por Harrison Ford. O tema da máquina que toma consciência de si mesma e acaba dominando o seu criador apareceu em muitas fitas de ficção, desde “Matrix” à saga do “Exterminador”. Pela sua parte as três peças de “Mad Max”, especialmente a segunda, remetem directamente para a angústia expressionista. Não é por acaso que esta série foi filmada nos anos 80, quando se experimentava o terror de que a guerra-fria se convertesse em quente.

De facto, Metropolis é um produto de um tempo angustiante e que somente pode ser apreciado por quem experimentou uma angústia existencial absoluta.

Metropolis oitenta anos depois

Quem pretenda ver Metropolis com os olhos do século XXI sentir-se-á decepcionado e aborrecer-se-á tremendamente. Metropolis é uma película que figura por direito próprio na história do cinema mas não é uma película actual. O argumento é antiquado, os truques, inclusive os mais imaginativos, são infantis face aos desenvolvimentos dos modernos efeitos especiais. A linguagem narrativa é completamente diferente da utilizada hoje.

A película, apesar de ser muda, entende-se com facilidade, mas, em alguns momentos, resulta pueril. A mesma crítica ao processo de produção capitalista resulta infantil e hoje está ultrapassada. A mecanização não é o grande problema do mundo moderno; de facto, Metropolis antecipa-se à modernidade: o robô acabou por ser o rei das cadeias de produção e não o trabalhador alienado.

Talvez a estética de Metropolis seja o que melhor suportou o passar do tempo. O robô destila um singular aroma de modernidade e é, sem dúvida, o autómato mais imaginativo jamais realizado no cinema. Os que temos o poster da película num lugar destacado do nosso local de trabalho temos a imagem como uma das mais felizes da história do espectáculo.

Há que considerar esta fita como uma das que fizeram avançar um passo mais a indústria do cinema. Se a ficção científica tem um antes e um depois de “Blade Runner” e “2001” e o cinema bélico um antes e um depois de “O resgate do soldado Ryan”, Metropolis constituiu um passo me frente na experiência expressionista. É, desde logo, uma película de transição entre um cinema que dava os seus primeiros passos balbuciantes e o cinema como arte.

O expressionismo alemão situou-se nesse ponto de inflexão da história cinematográfica. Lang compreendeu-o. No fundo quis sempre fazer do cinema uma arte. Ao contrário de Howard Hawks, bom artesão, que jamais teve outra ambição do que fazer um cinema de entretenimento. Se com Lang o cinema é arte, com Hawks o cinema é indústria.

Ernesto Milà, 5 Directores de cine americano (II) Fritz Lang (2ªparte) Metrópolis