(Publicado como no original, encontrado na Terra e Povo)
Em homenagem à memória de Georges Dumézil
A Exortação da Guerra de Gil Vicente começa, o seu tanto contraditoriamente, pela declamação de um clérigo nigromante que sabe
(…) modos d`encantamentos
quaes nunca soube ninguém;
artes para querer bem,
remedios a pensamentos:
[fazendo] de um coração duro
mais que muro,
como brando leituairo[1];
clérigo que, por tudo quanto procazmente diz àcerca do seu próprio poder (segundo as suas palavras, não mais do que casado com as leis das coisas e dos seres[2]), se poderá assimilar com Mercúrio, o deus dispensador de bens e toda a abundância, a um tempo que inimigo de todo o empenho heróico, toda a claridade e toda a coerência[3]. Um Mercúrio que é plenamente aduzido (e, com isso, o paradoxo com o espírito de uma «exortação da guerra» não pode ser maior) nas palavras que Policena, a primeira das figuras por cuja sucessiva intervenção a peça se desenrola, dirige ao Infante D. Fernando, filho do rei D. Manuel:
Senhor Iffante Dom Fernando,
vosso signo é de prudencia,
Mercúrio por excelencia
favorece vosso bando.
Sereis rico e prosperado
e descansado,
sem cuidado e sem fadiga,
e sem guerra e sem briga[4].
São tais versos deveras impressionantes, particularmente os quatro que pusemos em direito, dado que neles a gama do vânico[5] é, do mesmo passo, declarada tanto positiva (além da alusão ao deus das riquezas, «sereis rico e prosperado / e descansado») quanto negativamente («sem cuidado e sem fadiga, / e sem guerra e sem briga»[6]). De facto, quase nada falta para inculcar a terceira função indo-europeia da sensualidade e bem-estar, uma vez que superlativamente se exprime a antinomia com qualquer forma de esforço — desde o mero cuidar até ao pleno guerrear — e se põe a tónica na riqueza, na prosperidade e no descanso. (…)
Mas daí se transita, através do amor, para o elogio da guerra.
Já o amor implica, por parte de quem lhe está sujeito, os predicados (manhas) dos perfeitos cavaleiros (perfeitos batalhadores[7]) das novelas de cavalaria. É o que precisa Policena, em resposta ao clérigo:
Cle. Que manhas, que gentileza
ha de ter o bom galante?
Pol. A primeira é ser constante,
fundado todo em firmeza.
Nobre, secreto, calado,
sofrido sem ser desdenhado,
sempre aberto o coração
para receber paixão,
mas não pera ser mudado.
Ha de ser mui liberal,
Todo fundado em franqueza:
Esta é a mor gentileza
Do amante natural.
……………………………………..
ha de ser o seu comer
dous bocados suspirando,
a dormir meo velando,
sem de todo adormecer.[8]
Advertir que o que deixamos sublinhado se opõe ao requerido pelo exercício da terceira função (e já não dizemos pelo da velhacaria, que é instabilidade, mudança, indiscrição, mexerico, mentira, dissimulação, glutonaria — de bens, de alimento, de informação — e dormir de pedra). E notar, outrossim, que as qualidades de constante, firme, nobre, sincero («sempre aberto o coração»), liberal, todo fundado em franqueza, sóbrio em comer e de pouco dormir são cousas no texto pedidas ao enamorado que por igual se exigem ao combatente, como nos diz designadamente uma formosa página do Victorial de Gutierre Diez de Games[9]. (…) A respeito do que Policena nos confirma quando, depois de afirmar que
quem ama com cautela (= com mau propósito, com não segue a tenção……astúcia, calculistamente)
dos Godos[10]
(onde a alusão à frontalidade e ao ímpeto, à generosidade e à nobreza, à vontade e ao estilo, respeita tanto à instância amorosa quanto à guerreira), dictamina que a causa principal de que um homem deva ser amado consiste em
que seja mui esforçado:
isto é o que mais lhe val.[11]
Aditando, logo a seguir:
Porque um velho dioso,
feio e muito tossegoso[12],
se na guerra tem boa fama,
com a mais formosa dama
merece de ser ditoso.
E, desde aí, o espírito se transfere da paz para a guerra:
Senhores Guerreiros guerreiros,
e vós Senhoras guerreiras,
bandeiras e não gorgueiras
lavrae pera os cavaleiros.
Que assi nas guerras Troianas
eu mesma e minhas irmans
teciamos os estandartes,
bordados de todas partes
com divisas mui louçans.
Com cantares e alegrias
davamos nossos colares,
e nossas joias a pares
per essas capitanias.
Renegae dos desfiados,
e dos pontos enlevados:
destrua-se aquela terra
dos perros arrenegados.
Ó quem vio Pantasilea
com quarenta mil estrellas
armadas como as estrellas
no campo de Palomea![13]
«Renegae dos desfiados», como quem diz: deixai os refinados lavores de uma costura própria dos remansosos, femininos ritmos da paz; como quem diz: optai pela guerra, tornai-vos guerreiras. Claramente se perfilando a inculcação de uma preferência das bandeiras sobre as gorgueiras, e também da alegria com que se devem sacrificar «colares, …joias a pares» (inequívocos índices de luxo e opulência, mormente feminis), em aras de uma aplicação castrense que se oferece à mesma mulher («armadas como as estrelas» ou cintilantes por seus ferros e aços no campo de batalha).
E então estabelece-se definitivamente a jerarquia entre paz e guerra, riqueza e ferocidade, comércio e beligerância, ditos e feitos (vozes e nozes), ser-se Genovês e ser-se Português. Dá-se às armas, enfim, toda a prioridade, tal como diz Pantasilea, que é quem a Policena, depois de ser invocada por esta, sucede sobre o tablado:
Ó! Deixae de edificar
tantas camaras dobradas
mui pintadas e douradas,
que he gastar sem prestar.
Alabardas, alabardas!
Espingardas, espingardas!
Não queirais ser Genoveses,
Senão muito Portugueses,
E morar em casas pardas.
Cobrai fama de ferozes,
Não de ricos, qu`he p`rigosa:
dourae a patria vossa
com mais nozes que as vozes.[14]
Teor que Aquiles, por sua vez chamado por Pantasilea (o que por tudo se entende), logo após reforça do seu ponto de vista andriarcal, de algum modo definindo duas situações (a da mansidão — ou evasão — pacífica e pacifista, e a de uma completa tributação à guerra) e concluindo pela opção beligerantes
……………………..
quando Saturno dormia
com todo seu firmamento[15];
e quando o sol mais luzia,
e seus raios apurava,
e a lua aparecia
mais clara que o meio dia;
e quando Venus cantava,
e quando Mercurio estava
mais pronto em dar sapiencia;
e quando o Ceo se alegrava,
e o mar mais manso estava,
e os sinos em clemencia;
e quando os sinos estavam
em mais gloria e alegria,
e os pólos s`enfeitavam,
e as nuvens se tiravam
e a luz resplandecia;
e quando a alegria véra
foi em todas naturezas:
nesse dia, mes e era,
nasceram Vossas Altezas.
……………………………………….
Quando Roma a todas velas
conquistava toda a terra,
todas donas e donzellas
davam suas joias bellas
para manter os da guerra.
Ó pastores da Igreja,
moura a seita de Mafoma,
ajudae a tal peleja,
que açoutados vos veja
sem apelar pera Roma.
Deveis de vender as taças,
empenhar os breviairos,
fazer vasos de cabaças,
e comer pão e rabaças,
por vencer vossos contrairos.[16]
O sono de Saturno e «todo seu firmamento» é de si eloquentíssimo para significar o inteiro antínomo da bélica tensão. Por outro lado, a necessária tributação à guerra efectua-se em termos materiais (a entrega das jóias de «todas donas e donzellas… para manter os da guerra») e em termos de renúncia e dura ascese dos eclesiásticos («fazer vasos de cabaças, / e comer pão e rabaças»). E isso como condição sine qua non de empresa colectiva que, como que vocacional, carismaticamente, se cumpre («quando Roma a todas velas / conquistava toda a terra»), ou para se vencer o inimigo («vossos contrairos»), para se vencer na guerra.
E acode também, para remate da peça, uma das três egrégias figuras (Aníbal, Heitor e Cipião), agora suscitadas por Aquiles: Aníbal. Este — cuja presença, como a dos outros dois, é «cousa escusada» e «não faz mister» no invencível, denodadíssimo Portugal de Quinhentos — aparece a reiterar definitivamente a prioridade de uma guerra vinculada à devação, à razão, à discrição, e contrária enquanto ela às prosperidade e abundância peculiares de um mundo pacifista:
He guerra de devação,
por honra de vossa terra,
cometida com razão,
formada com discrição
contra aquela gente perra.[17]
E:
Ó Senhoras Portuguesas,
gastae pedras preciosas,
Donas, Donzelas, Duquesas,
que as taes guerras e empresas
são propriamente vossas.[17]
……………………………………………
Ó! que não honram vestidos,
nem mui ricos atavios,
mas os feitos nobrecidos;
não briaes d`ouro tecidos:
com trepas de desvarios:
dae-os pera capacetes.[18]
Mostra-se aqui, em toda a evidência, o primado das funções da Soberania (ou da Religião) e da Força (Guerra) sobre a da Fecundidade-Sensualidade. Primado, por outras palavras, de uma posição ásica — sábia, ascética, heróica, cingida com o ser —, sobre uma posição vânica — ígnara, pusilânime, cousista, cobiçosa, casada com o ter —. E, com isso, a submissão dos (das) representantes da terceira função às necessidades-projectos das outras duas. Porque não só se exorta a um desprendimento de jóias e viandas, e de quanto integra uma existência materialmente deleitosa, como outrossim expressamente se afirma que as mesmas guerras e empresas pertencem às damas lusitanas — mães, filhas, irmãs, noivas, esposas dos homens que nelas lutam, sofrem e morrem, ou, de todo o modo, a fonte humana de uma comunidade nacional —. A peça termina, com efeito, mais do que com submeter a terceira função às outras duas, com incluí-la, em atitude dominante, no status da guerra e sua possibilidade-certeza. Um status em que a mulher não será só, ou apenas sobretudo, a origem moral-carnal dos combatentes, uma vez que, como as amazonas anteaduzidas, pode — e em certas circunstâncias deve — formar com gesto belígero ao lado do varão.
Pela sua estrutural clareza, reproduzimos, na íntegra, a tirada de Aquiles:
Deveis, Senhores, esperar
em Deos, que vos ha de dar
toda África na vossa mão.
África foi de Christãos,
mouros vo-la tem roubada.
Capitães ponde-lhe as mãos
que vós vireis mais louçãos
com famosa nomeada.
Ó Senhoras Portuguesas,
Gastae pedras preciosas,
Donas, Donzellas, Duquezas,
que as taes guerras e empresas
são propriamente vossas.
He guerra de devação,
por honra de vossa terra,
cometida com razão,
formada com discrição
contra aquela gente perra.
Fazei contas de bugalhos,
e perlas de camarinhas,
firmaes de cabeças d`alhos;
isto sim, Senhoras minhas,
e esses que tendes dae-lhos.
Ó! que não honram vestidos,
nem mui ricos atavios
mas os feitos nobrecidos;
não briaes d`ouro tecidos
com trepas de desvarios:
dae-os pera capacetes.
E vós, priores honrados,
reparti os priorados
a Suiços e a soldados.
Et centum pro uno accipietis.
A renda que apanhais
o melhor que vós podeis,
nas igrejas não gastais,
aos proves pouca dais,
eu não sei que lhe fazeis.
Dae a terça do que houverdes
pera Africa conquistar,
com mais prazer que puderdes;
que quanto menos tiverdes,
menos tereis que guardar.
Ó senhores cidadãos,
Fidalgos e Regedores,
escutae os atambores
Com ouvidos de Christãos.
E a gente popular
avante! não refusar,
ponde a vida e a fazenda,
porque pera tal contenda
ninguem deve recear.[19]
Onde ressaltam os três estratos-funções da Soberania-Sabedoria, situada ao mais alto nível, que é o de Deus Senhor de que dimana («deveis, Senhores, esperar / em Deus, que vos ha de dar / toda África na vossa mão», «he guerra de devação, / por honra de vossa terra, / cometida com razão, / formada com discrição»), da Força («Capitães ponde-lh`as mãos» como frase mais destacada num contexto exaltador da guerra) e da Fecundidade, Riqueza, Opulência, Prosperidade («Senhoras Portuguesas», «pedras preciosas», «ricos atavios», «briaes d`ouro», «priorados», «rendas», e mesmo «a vida e a fazenda»).
A trifuncionalidade indo-europeia, estudada e magistralmente explicada-iluminada por Dumézil ao longo de meio século e de milhares de páginas de uma obra enxundiosíssima, encontra nesta tragicomédia de Gil Vicente surpreendente ilustração. Qual se o grande dramaturgo peninsular se figurasse criticamente essa trifuncionalidade e, criticamente, levando pela mão o seu portentoso engenho, tivesse querido exprimi-la de forma teatral. Desnecessário seria dizer que isso não teve, decerto, lugar, uma vez que o talento verdadeiro se encontra de natura misteriosamente assimilado com as essências e estruturas profundas de toda a realidade.
Pretória, Out.º 75.
Bayona-la-Real, Dez.º 87.
Alto da Castelhana (Cascais), Dez.º 95.
Última revisão-redacção, Porto-Covo, Agosto 96.
Notas:
1 — Págs. 128-129 do vol. IV das Obras Completas de Gil Vicente, com prefácio e notas do Prof. Marques Braga (Lisboa, Sá da Costa, 1943) — edição que utilizamos, respeitando-lhe a ortografia, ao longo deste apontamento —. No que se refere à contradição aludida, na qual um clérigo (primeira função existencial, conforme uma Weltanschauung indo-europeia), situado numa circunstância de exortação da guerra (segunda função), e uma guerra obrigada por motivos religiosos, à qual, por isso, ampara a Igreja (de novo, primeira função), se assimila com Mercúrio e as potências infernais, importa dizer que tal contradição se atenua se pensamos que a magia, o sonho e, inclusive, a metamorfose (basta com lembrar Zeus-Jupiter e o seu culto), apesar de mais interpretados pelo velhaco divino (Dumézil, Radin, Kerenyi, Jung e outros), pertencem também à primeira função ou no âmbito dos seus titulares se manifestam. (À relação mistérica entre o ctónico e o solar e celestial não foge nenhum dos principais deuses e heróis em qualquer dos quadrantes da mítica indo-europeia. V. Charles Beaudoin, Le Triomphe du Héros, Paris, Plon, Présences, 1952, e sobretudo a nota 22 do nosso ensaio, Presenças célticas, escandinavas, altogermânicas e outras no “Libro de Buen Amor” de Juan Ruiz, a aparecer (?), com outros, no livro Afã de entender, cuja publicação prevemos se efectue dentro dum ano.)
2 — Tudo o que contêm as págs. 129-131.
3 — Eis a ficha, quanto possível completa, de Hermes-Mercúrio:
O deus do embuste e de todas as encruzilhadas físicas e morais.
O astuto, o enganador, o, em extremo desenvolto, patrono de ladrões e de velhacos — nomeadamente dos que sabem ou intentam, clandestina ou mesmo abertamente, alcançar vantagens imerecidas —. «Senhor da gente que age na sombra.» (Eurípedes). Obscuridade de que é filho e senhor. Patrono outrossim dos criados (pícaros), aos quais comunica uma particular aptidão para se tornar indispensáveis a seus amos (que o deus identicamente trabalha…)
O indiscreto (bisbilhoteiro) por antonomásia: aquele que tudo sabe, tudo delata e, inclusive, tudo apregoa. Velocíssimo e como que ubíquo. O demiurgo das intrigas e enredos mais inextrincáveis. (Loki e Iago, nos planos mítico e dramatúrgico, respectivamente.)
A mesma instabilidade. E, assim, não pertencendo a nenhum círculo, nem tendo morada certa. Antes deambulando de cá para lá em todos os níveis e sectores. E surgindo, sobretudo, ao homem solitário (Mefistófeles).
Todas as peripécias, aventuras e metamorfoses. Príncipe de todo o vário e contraditório. Todos os meandros do engano e da felonia.
Filho-mensageiro (e paredro) de Zeus-Júpiter (pai dos deuses e paradigma de toda a velhacaria) e da ninfa-cova Maya (que «vivia en el fons d`un antre ombrós» — Maragall). Pai do perjuro Autólicos e avô do aleivoso Ulisses.
Cobarde e fugindo à luta, à que, como seu neto o arqueiro Ulisses, cumpre à distância. Incapaz de esforço heróico — ao qual denigre —.
Em tudo, filho da obscuridade ou da sombra, e, como tal, em tensão congénita com a luz e seu deus, Apolo, a quem, porque sim (ôntico ditame), inda em cueiros, rouba os rebanhos.
Senhor dos rebanhos e das messes e, também, dispensador de bens e qualquer forma de riqueza, a um tempo que inimigo de toda a energia generosa, toda a lucidez mental, toda a coerência. Glutão (de comida, bens, notícias).
Os mesmos, enfim, engano, concupiscência e malícia. Que, trevas da alma, exerce sobretudo no seio da noite, seu reino.
Espírito da noite e guia dos mortos — ou guia no escuro —. O psico-pompo ou Seelensführer (Kerényi).
«Ciò che Ermete anima e domina è un mondo in tutto il senso del termino, ossia tutto un mondo, non un frammento qualsiasi di tutta la soma dell`esistenza.» (Ocorre-nos Dionysos.) «La sua vastità non vien più stabilita del desiderio umano, sibbene da una forma caratteristica di tutta l`esistenza. E si trova allora che questa sfera comprende buono e cattivo, riuscita e desilusione, alto e basso.» «È lo spirito di una maniera d`esistere, chi ritorna sempre di bel nuovo sotto le più diverse condizioni, ed accanto alla conquista conosce il dileguarsi di quella, accanto alla bontà la malvagità.» «Ogni vita conosce cosa sia cavalleria d`industria e pirateria, e ne vive assai piu di quel che crede.» «…un mondo nel dio ed il dio in tutto il mondo.» «Il più umano fra tutti gli dei.» (Um deus-todo-o-mundo…) Passos, relativos ao mais subtil e universal de Hermes-Mercúrio, que extractamos da aliciante versão italiana (Firenze, Nuova Italia, 3.ª edizione, 1955) do excelente livro de Walter Otto, Die Götter Griechenlands — cujas páginas sobre Ermete (Hermes) são deveras extraordinárias —. Recordar que, segundo Celso (Origenes, Contra Celso, VI, 22), nos sete níveis vitais, a que correspondem diversos metais, Mercúrio ocupa o quarto — o do ferro —.
4 — Págs. 140-141. Destaques nossos.
5 — «Vanes, dieux caracterisés par la richesse, la fécondité et la volupté, et les Ases, dieux de la grande magie et la force guerrière.» «Vanes: ces dieux que normalment se caractérisent par la prosperité et par un goût impérieux de la paix.» São dois concisos passos definitórios que, entre mil, encontramos num dos mais importantes livros de Dumézil, Mythe et Epopée I, Paris, Gallimard, 1968, respectivamente págs. 288 e 291.
6 — O que guarda cabal antinomia com o que no Romancero se exprime através da quadra famosa:
Mis arreos son las armas,
mi descanso el pelear,
mi cama las duras peñas,
mi dormir siempre velar.
7 — Além dos romances de cavalaria, importa lembrar todo um conjunto de obras que vão desde El Victorial, de Gutierre Diez de Games, e os Leal Conselheiro e Livro da Ensinança de bem cavalgar toda sela, de D. Duarte, até ao Cortegiano, de B. Castiglione, magnificamente recriado por Boscán, e o Enquiridion o Manual del Caballero Cristiano, de Erasmo, exemplarmente posto em castelhano pelo Arcediano de Alcor, passando pelo Tratado del Esfuerzo bélico-heróico de Palacios Rubios, as Epístolas familiares, o Reloj de Príncipes e Aviso de privados, de Fr. António de Guevara, e o Doctrinal de Caballeros, de Alonso de Cartagena, que por sua vez suscitam o Regimiento de Príncipes, de Gómez Manrique, e o Doctrinal de privados e Los proverbios de gloriosa doctrina y frutuosa enseñanza, de Iñigo López, para não retroceder às espécies, inda mais específicas, de Lulio e D. Juan Manuel, respectivamente o Libro del Orden de Caballeria e o Libro del Caballero y del Escudero. (…) Isto, na esfera das letras peninsulares, e sem contar, portanto, todos os regimentos e espelhos do cavaleiro e da cavalaria que têm no Ritterspiegel de Johannes Rothe (século XV) uma das suas melhores expressões. Em qualquer das obras indicadas se inculcam, num ou noutro grau, as condições ou qualidades morais do perfeito senhor, cavaleiro, cortesão, e se define a preparação guerreira como aquela que especificadamente lhe respeita. Escreveu-o, por todos Castiglione (na versão de Boscán): «Pero demás de la bondad, el substancial y principal aderezo del alma pienso yo que sean las letras, no embargante que los Franceses tengan solamente las armas en mucho.» «Pero escusado es deciros esto a vosotros que bien conoceis cuán gran engaño reciban los Franceses pensando que las letras embaracen las armas.» «Por cierto el que no siente el provecho que hay en las letras tampoco puede sentir la grandeza de la gloria por ellas conservada, y solamente mide la fama con la edad de un hombre o de dos, porque no puede tener memoria de más tiempo.» «Todavia será más seguro que, aunque conozca ser verdaderos los loores que le dan, los reciba con templanza y no los sufra así puramente sin más, ni los confiese sin alguna contradicíon, sino que moderadamente casi los niegue, mostrando siempre tener en efecto por su principal profesión la de las armas, y significando que todas las otras buenas calidades son por ornamento de aquéllas. Esto en especial se ha de hacer entre hombres de guerra, por no ser como aquellos que entre letrados quieren parecer guerreros y entre guerreros letrados.» (Il Cortegiano, Cap. IX, do Livro I, na versão castelhana — v., por exemplo, a edição recente de Bruguera, Libro Clássico, Barcelona, 1972 —, que corresponde às partes ou capítulos XLI-XLVI do original italiano — v. a edição da Unione Tipografico-Editrice Torinese, Classici Italiani, Torino, 1964 —. Os passos transcritos encontram-se, respectivamente, nos capítulos XLII, XLIII, idem, e XLIV do texto italiano.)
8 — Págs. 143-144. Destaques nossos. Onde se mostra uma série de elementos que constam identicamente deste passo de Jorge Ferreira de Vasconcelos, Aulegrafia, Acto III, Cena 6: «O bom galante, primeiramente há de ser liberal, se quer alcançar a vitória… paciente… discreto… secreto, & não vão glorioso para encubrir suas glórias (=grandes prazeres).» Passo que Marques Braga reproduz na sua edição de Gil Vicente que utilizamos. —Na sequência desta caracterização feita por Gil Vicente, verifica-se que galante assume o valor bifronte que inda hoje possui em Inglês, onde gallant e gallantry tanto respeitam a valentia, bravura e, portanto, valor guerreiro, quanto a gentileza. Duas faces do genuíno semblante aristocrático dos melhores tempos. O que supremamente nos explicam as obras novelísticas de Barbey d`Aurevilly e La Varende, em cujo espectro ingredencial ocupam essas faces o lugar da majestade.
9 — Página de que extractamos este parágrafo: «Los cavalleros, en la guerra, comen el pan com dolor; los biçios della son dolores e sudores: vn buen dia entre muchos malos. Pónense a todos los travaxos, tragan muchos miedos, pasan por muchos peligros, abenturan sus vidas a morir o vivir. Pan mohoso o vizcoho, biandas mal adovadas; a oras tienen, a oras no nada. Poco vino o no ninguno. Agua de charcos e de odres. Las cotas vestidas, cargados de fierro; los henemigos al ojo. Malas posadas, peores camas. La cama de trapos o de ojarascas; mala cama, mal sueño.» O que contrasta com o que se consigna no anterior: «Ca los de los ofiçíos comunes comen el pan folgando, visten ropas delicadas, manjares bien adovados, camas blandas, safumadas; héchándose seguros, levantándose sin miedo, fuelgan en buenas posadas com sus mugeres e sus hijos, e servidos a su voluntad, engordan grandes cerviçes, fazendo grandes barrigas, quiérense bien por hazerse bien e tenerse biçiosos. Qué galardón o qué honrra meresçen? No, ninguna.» (Conforme a edição de Juan Mata Carriazo, Madrid, Espasa-Calpe, 1940, pág. 42.) — Uma oposição entre o mundo cavaleiro e o mundo burguês (entre, neste caso, o guerreiro e o oficial comum) que, dando saltos com botas de sete séculos, encontramos, por exemplo, quer em Quevedo, La hora de todos, quer no nosso tempo, em La Varende, Saint-Simon et sa comédie humaine, (…) ou na introdução de Eugenio Asensio à sua edição da Eufrósina. Nestes casos, precisamente, entre o ímpeto e o estudo, ou entre a nobreza combatente e a burguesia legista e parlamentar, doutora até pela Universidade.
10 — Pág. 144.
11 — Idem.
12 — Ocorre-nos aquela passagem do Guzman de Alfarache (Primera Parte, Libro I, Cap. II): «Este caballero era hombre mayor, escupía, tosía, quejábase de piedra, riñon y urina.» Apesar de que, nas novelas de cavalaria, se admita o enamoramento profundo e vivo, a paixão até, não só de uma mas de muitas mulheres por homens já maduros — provectos na idade —, qual é o celebrado caso de Galvão quem, com seus setenta anos, desperta as trágicas fidelidades que, de modo paradigmático, patenteia La Mort le Roi Artu (séc. XIII), designadamente na Story of Sir Gawain and the lady of Beloé, trecho 174 na edição de Penguin Classics, 1975, cujo texto-matriz da versão inglesa é o estabelecido por Jean Frappier.
13 — Págs. 145-146. Destaques nossos.
14 — Págs. 147-148. Idem.
15 — O tempo passava placidamente, «quando Saturno dormia». (Podemos por no presente, e dizer passa e dorme.) Ocasião em que se congregam os deuses que formam do lado da paz ou, pelo menos, a aceitam (Júpiter, Mercúrio, Venus, a Lua, o Sol), incluído o mesmo Marte, uma vez que «suas forças repartia» (pág. 159) ou as não reunia para a guerra.
16 — Págs. 149-151. Destaques nossos.
17 — Pág. 153. Idem.
18 — Pág. 154. Idem.
19 — Págs. 153-155. Idem.