Month: Janeiro, 2011

Estado de Guerra

Vi Estado de Guerra (The Hurt Locker) há umas, poucas, semanas. Gostei francamente. Estado de Guerra é um filme “jungeriano”: a guerra é retratada como uma experiência interior, quase mística, onde os homens se descobrem no pior e no melhor. Não é um filme moralista, não impinge ao espectador uma moralidade a preto e branco sobre aquele conflito em particular ou a guerra em geral.

A história acompanha uma comissão no Iraque do Sargento William James, um especialista em desarmamento de bombas viciado na adrenalina daqueles momentos em que, sozinho perante engenhos explosivos que tem de anular, se vê confrontado, ao mais pequeno erro, com a iminência da sua própria morte. Esse gosto pelo perigo, pela vida no arame, contrasta com a existência pacata que deixou para trás nos EUA, juntamente com a sua jovem e bela mulher e filho bebé.

E é nesse contraste que reside a força e a originalidade deste filme, porque, ao contrário do que é costume, neste caso não é para a existência pacífica e tranquila de uma vida familiar que o herói ambiciona regressar. Pelo contrário, ele deseja, isso sim, fugir dessa existência serena para regressar a esse desafio quotidiano contra a morte. Porquê?

Uma das cenas memoráveis do filme ajuda a perceber a razão. Depois de ter regressado a casa, James está com a família num hipermercado a fazer compras e, a dada altura, chega a uma infindável prateleira com dezenas e dezenas de marcas de cereais. Ele pára em silêncio a olhar para aquela diversidade de oferta, indeciso quanto ao que comprar, e percebemos a irrelevância de tudo aquilo, percebemos que havia mais vida na guerra do que na tranquilidade anestesiante e alienante que a sociedade de consumo oferece, com as suas inúmeras marcas e necessidades artificialmente criadas, existência mais própria de animais domésticos do que de homens…é ali, naquele hipermercado, que ele está verdadeiramente morto, sem centelha de vida. No mundo moderno, perante existências serenas, repetitivas e desinteressantes, a guerra pode constituir para alguns um refúgio onde viver aventurosamente e intensamente, apenas com virtudes de carácter, sem hierarquias de dinheiro ou necessidade de aptidões comerciais. Afinal, um homem pode morrer aos 100 anos e, bem vistas as coisas, apenas ter vivido 365 dias de uma qualquer comissão de guerra…

Ezra Pound: o poeta que a burguesia odiou

SAUDAÇÃO

Oh geração dos afectados consumados
e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir.

[tradução de Mário Faustino]

Reescrever os clássicos

Depois das várias acções levada a cabo na Europa para proibir a venda do álbum de banda desenhada “Tintim no Congo”, sob a acusação de retratar os negros como seres infantis, pouco inteligentes e de feições “amacacadas”, chegou agora a vez dos grandes clássicos da literatura mundial serem alvo de uma “re-escritura”. Nos Estados Unidos uma nova edição das Aventuras de Huckleberry Finn, clássico de Mark Twain que desde há décadas faz parte dos currículos escolares norte-americanos, propõe um texto alterado, substituindo as palavras “niger” por “slave” e “injun” por “indian”. Aparentemente alguns consideram a versão original do autor ofensiva e para evitar a censura de algumas escolas achou-se mais adequado reescrever o livro de forma politicamente mais correcta. Não precisamos de chegar a queimar livros, a sociedade multirracial e multicultural ou os proíbe ou os reescreve.

O projecto farol

“O inquérito feito pelo projecto Farol a 1002 pessoas mostra que 94% dos portugueses desconfiam ou confiam muito pouco na classe política, 89% nos partidos políticos, 84% na Assembleia da República e 90% nos governos. E, quando é pedido um diagnóstico do País, 46% consideram que as actuais condições económicas e sociais são “piores ou muito piores quando comparadas com a vida há 40 anos”. Em relação a um passado mais recente, 58% dos inquiridos entendem que a situação está pior ou muito pior do que antes da entrada na União Europeia. E o pessimismo é elevado em relação aos próximos dez anos: 53% admitem que a situação económica será pior ou muito pior.”

Resultados do inquérito do Projecto Farol sobre a situação do país

O “Projecto Farol” é um lóbi criado pelos mesmos do costume e com a agenda política do costume, não traz nada de novo à vida política nacional e não propõe qualquer alteração de paradigma político-económico, visa penas defender alguns interesses bem instalados na sociedade portuguesa e não podemos deixar de manifestar o nosso desdém pela análise que alguns dos alarves endinheirados ligados a esse projecto pretenderam fazer dos resultados acima transcritos. Desacreditar os resultados afirmando que são fruto da ignorância das pessoas, como se eles fossem parte de uma elite intelectual superior, única capaz de alcançar a verdade, enquanto todos os outros que deles discordam fossem parte de uma massa de estúpidos, é de uma baixeza assinalável. Mas, no fundo, nada disso é assim tão surpreendente, afinal de contas, não há dúvida de que o 25 de Abril foi óptimo para alguns dos mentores do “Projecto Farol”. Belmiro de Azevedo é um desses casos, homem que no Portugal democrático se passeia nas televisões com fama de grande empreendedor quando na realidade não passa de um novo-rico dono de hipermercados e cadeias de retalho que contribuem mais para aumentar a dependência nacional da importação de bens de consumo do que outra coisa qualquer, sem nada produzir que traga verdadeiramente valor acrescentado ao país e quanto a Daniel Proença de Carvalho, o excelso regime democrático permitiu, só a título de exemplo, que passasse a ganhar, em média, 15.800 euros de cada vez que perde uma hora ou duas do seu precioso tempo em reuniões de empresas do PSI 20 como “administrador não executivo”. Como é que não haviam de vir a terreiro cheios de indignação em defesa daquilo que lhes garante os privilégios vergonhosos? Paciência para eles…enquanto isso Salazar vai rindo do fundo da sua tumba. Qualquer um com responsabilidades político/empresariais neste regime, a quem restasse resíduo de dignidade, coraria de vergonha e faria uma reflexão séria sobre o estado a que chegou o sistema, mas aqueles a quem a vergonha já nada diz, limitam-se, como habitualmente, a criticar quem não vota como pretenderiam.

Também nós, meu caro.

“Fui sempre nacionalista e internacionalista ao mesmo tempo. Não internacionalista à maneira pacifista ou humanitária, não universalista, mas sim no âmbito da Europa.”

Pierre Drieu la Rochelle, Récit Secret, 1961

Sobre o neo-realismo: ou a visão marxista do mundo

(Imagem retirada do filme Ladrões de Bicicletas de Vittorio de Sica)

Em poucas décadas, o neo-realismo tomou conta da vida cultural. Primeiro pelas chamadas artes plásticas, com os troca-tintas inspirados no muralismo mexicano e nas obras de Orozco, Rivera e Siqueiros. Depois, pelo cinema italiano do pós-guerra, dito progressista e de vanguarda, com Visconti, Rossellini, Zavattini, Vittorio De Seca — e a cara da Anna Magnani, séria e grave, o rosto vincado por padecimentos e lágrimas. E, finalmente, pela literatura. Sobretudo em Portugal, com a estética marxista vertida da «Vértice» em vertigem vertical. Plêiade de autores numerosa: Alves Redol e Mário Dionísio, José Gomes Ferreira e Fernando Namora, entre outros tansos das letras. (Ao Namora, zurziu-o de alto a baixo o Luiz Pacheco, que lhe catou do «Domingo à Tarde» os passos plagiados da «Aparição», de Vergílio Ferreira — e que, ao depois, publicou o resultado da pesquisa, com grande escândalo do PCP, no folheto «O Caso do Sonâmbulo Chupista».) O estilo é seco, despojado, jornalístico. Rompe com os temas do passado: o cinema neo-realista filma os bairros sociais, as vilas de pescadores, os meninos esfarrapados, as ruas buliçosas do centro das cidades; os escritores, esses, chafurdam na «luta de classes» — e pintam um painel engagé dos conflitos que opõem operários e patrões, camponeses e agrários.

E assim passaram décadas. No inferno, com o coiro a arder, o Münzenberg batia as palmas estrepitosamente. E por cá, ao fresco, a trupe do neo-realismo — ou neo-realejo, segundo o grande Tomás de Figueiredo — seguia minuciosamente as recomendações de Álvaro Cunhal, plasmadas nas páginas de «O Diabo» (o dos anos 30, não o actual): a ideia de que a Arte deve “exprimir actualmente uma tendência histórica progressista” e “exprimir a realidade viva e humana de uma época”.

O exame atento às últimas eleições autárquicas permite concluir que — depois da pintura, do cinema e da literatura — o neo-realismo abancou na política. É um neo-realismo mitigado e serôdio, mas ainda marxista nos fundamentos e no discurso. Está presente nos programas de todas as candidaturas, do CDS-PP ao PCP. Nuns e noutros, o “cidadão” ou “munícipe”, como eles lhe chamam, é considerado unicamente como um “ser social”. O Alves Redol não faria melhor. E depois a mesma lábia larga e impostora no raciocínio sobre os “desfavorecidos” e os “humildes”. Ao redigir o programa, cada candidato semelha um cozinheiro simpático e barrigudo que, usando de pouco sal (por causa do colesterol político), leva ao lume uma espécie de sopa dos pobres para todas as “classes”.

Estorce-se nos vários parágrafos o realismo socialista. Disfarçado embora, dá de si em todos os domínios: o demasiado planeamento urbano, o ardil da “habitação social”, a questão benquista das minorias étnicas, as “zonas verdes” ao quilo, a cultura de subúrbio, a influência distorcida do «new urbanism» norte-americano. A própria mania das ruas pedonais e o Dia Europeu sem Carros, a que adere ano após ano um número crescente de municípios, relevam menos da protecção ao ambiente que do neo-realismo político. O automobilista é o novo “explorador”. Há trinta anos, na lonjura da planície, impôs-se «a terra a quem a trabalha»; hoje, na agitação febril da cidade, reclama-se «a rua a quem a caminha».

Desquitada do proletariado periférico e dos campónios do interior, a nova esquerda «cultural» montou locanda de secos e molhados na grande cidade. Com águas correntes e luz eléctrica, abraça a causa dos homossexuais, imigrantes e outras minorias. Marcuse e a Escola de Frankfurt estabeleceram os princípios desta “neo”-realpolitik.

Bruno Oliveira Santos

Complementares, jamais iguais…

(A Gentlemanly Act, quadro de George Goodwin Kilburne)

“O gesto de um homem que abre uma porta para uma mulher ilustra como os homens e as mulheres se relacionam. Todos sabemos que uma mulher é capaz de abrir uma porta. Mas quando um homem o faz, está a afirmar a feminilidade, beleza e graça dela. Quando ela aceita graciosamente, está a validar-lhe a força masculina. Esta troca, uma mulher abdicando de poder físico em prol da protecção de um homem (i.e., amor) é a essência da heterossexualidade. Para poderem evoluir emocionalmente, os homens e as mulheres precisam desta validação mútua tanto quanto de sexo propriamente dito. O sexo é uma expressão deste contrato exclusivo. Sob a influência tóxica do feminismo as mulheres passaram a abrir as suas próprias portas. Nenhuma das identidades sexuais é validada, nenhum dos sexos amadurece emocionalmente. Os homens sentem-se redundantes e impotentes, as mulheres sentem-se rejeitadas e mal-amadas”

Henry Makow

Os homens a sério usam os punhos

O que é que o PIB diz sobre uma nação?

(idolatria do Bezerro de Ouro, desenho de Henri Meyer)

«Em excesso e durante demasiado tempo, parece termos submetido a excelência e os valores da comunidade à mera acumulação de coisas materiais. O nosso PIB, se devêssemos julgar a América por isso, – inclui poluição do ar e publicidade ao tabaco e ambulâncias para limpar as nossas auto-estradas de carnificinas. Inclui cadeados especiais para as nossas portas e prisões para aqueles que os arrombam. Inclui a destruição das nossas florestas e a perda das nossas maravilhas naturais na caótica expansão urbanística. Inclui o napalm e o custo de uma ogiva nuclear, e carros blindados para a polícia que combate motins nas nossas ruas, inclui a espingarda de Charles Whitman e a faca de Richard Speck e os programas de televisão que glorificam a violência para venderem brinquedos às nossas crianças.

Contudo o PIB não providencia a saúde das nossas crianças, a qualidade da sua educação, ou a alegria das suas brincadeiras. Não inclui a beleza da nossa poesia ou a solidez dos nossos casamentos, a inteligência do nosso debate público ou a integridade dos nossos funcionários públicos. Não mede nem o nosso engenho nem a nossa coragem, nem a nossa sensatez nem o que aprendemos, não mede a nossa compaixão nem a nossa devoção à pátria, mede tudo, em resumo, excepto o que torna a vida valiosa. E diz-nos tudo sobre a América excepto a razão pela qual nos orgulhamos de ser americanos»

Robert F. Kennedy, University of Kansas, Lawrence, Kansas, 18 de Março de 1968

Para perceber a Globalização

(fotografia de Jaroslav Kučera: protestos anti-globalização em Praga)

«A globalização ocorreu por meio de três distintas, mas claramente interligadas, interpretações e representações do mundo: como materialização do “momento cosmopolita” sociopolítico (para usar uma expressão cunhada por Seyla Benhabib) do globo, como palco de operações para interesses multinacionais corporativos/financeiros e como campo de batalha no qual os conflitos são vistos como necessitando de soluções abrangentes e globais que devem ser alcançadas através de uma nova ordem mundial. No seu estádio actual, a construção de um mundo unificado é largamente sinónimo do governo mundial ideal imaginado na sociocracia do filosofo francês Auguste Comte durante o século XIX, no qual banqueiros internacionais e “think tanks” elitistas determinam e executam as políticas públicas.

Implícito neste ideal global está, claro, a completa dissolução do Estado-Nação enquanto tal através da integração gradual, mas efectivamente irreversível das nações individuais na rede totalitária das entidades políticas, económicas e judiciais/jurídicas que operam a uma escala global – muito em especial as Nações Unidas, o FMI, o Banco Mundial, o Banco de Compensações Internacionais e a OMC.

As raízes filosóficas deste processo de integração podem ser encontradas nos factores determinantes que levaram ao tratado de Vestefália, que acabou com a horrenda guerra europeia dos 30 anos(…)

Mas o tratado de Vestefália foi da maior importância também por uma outra significativa razão. Os Concelhos de Munster e Osnabruck conseguiram estabelecer através do discurso racional o conceito de um acordo de paz baseado no primado da razão e de leis que transcendem conflituantes interesses nacionais e sistemas de valores, efectivando, num sentido verdadeiramente Kantiano, a ideia reguladora de paz alcançável como um principio de razão para guiar todas as acções das partes envolvidas, e em relação à qual todas as partes, nolens volens, se deveriam submeter. Isto é claramente evidente na forma como várias cláusulas do tratado assumiram um papel meta-normativo. Assim, o tratado abriu caminho a uma era de pensamento secularizado no qual o governo da lei e da negociação politica serviram como instrumentos de resolução de conflitos e como directrizes para assegurar a soberania nacional assente em princípios racionalistas.

Paralelamente ao desenvolvimento de princípios internacionais de conduta cosmopolita no nosso próprio tempo, como os encontrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos estatutos da Convenção de Genebra, os interesses económicos e financeiros exploraram tanto os códigos judiciais formulados nos acordos internacionais como as medidas jurídicas que agora, em muitos casos, superam as leis nacionais preexistentes através de corpos cada vez mais totalitários como a Organização Mundial do Comércio. É o poder personificado por interesses financeiros concentrados que hoje em dia está no processo de transformar a nossa vida e experiências de formas nunca antes imagináveis.(…)»

James Polk, The Historical Framework of Globalization