Sobre a propaganda – Um texto essencial
A somar a um certo nível de vida, outra condição tem de ser alcançada: para o homem ser devidamente alvo de propaganda, ele precisa de ter um mínimo de cultura. A propaganda não consegue ter êxito onde as pessoas não têm registo de cultura ocidental. Não estamos a falar de inteligência; algumas tribos primitivas serão seguramente inteligentes, mas têm uma inteligência estranha aos nossos conceitos e costumes. É necessária uma base – por exemplo, educação: um homem que não sabe ler facilmente escapará à maioria da propaganda, tal como um homem que não está interessando em ler. As pessoas costumavam pensar que aprender a ler evidenciava o progresso humano, ainda celebram o declínio da iliteracia como uma grande vitória, condenam-se países com uma grande percentagem de analfabetos, pensa-se que saber ler é uma estrada para a liberdade. Tudo isto é discutível, porque o importante não é ser capaz de ler, mas perceber o que se lê, reflectir e fazer um julgamento sobre o que se lê. Fora disso, ler não tem qualquer significado (e até destrói certas qualidades automáticas de memória e observação). Mas falar de faculdades críticas e discernimento é falar de algo muito acima da educação elementar e considerar uma minoria muito pequena. A vasta maioria das pessoas, talvez 90%, sabem ler, mas não exercitam a sua inteligência para além disso. Atribuem autoridade e valor eminente ao que é publicado, ou, inversamente, rejeitam-no totalmente. Como estas pessoas não possuem conhecimento suficiente para reflectir e discernir, acreditam – ou descrêem totalmente no que lêem. E como essas pessoas escolherão a leitura mais fácil estão precisamente no nível em que a palavra publicada os consegue agarrar e convencer sem oposição. Estão perfeitamente adaptados para a propaganda.
Não vamos dizer: “se lhes déssemos melhores leituras…”, “se estas pessoas recebessem uma melhor educação…”. Tal argumento não tem validade porque as coisas não são assim. Não vamos também dizer:”Isto é apenas a primeira fase, em breve a sua educação será melhor, é preciso começar por algum lado”. Primeiro, é preciso muito tempo para passar da primeira para a segunda fase. Em França a primeira fase foi alcançada há meio século atrás e ainda estamos muito longe de atingir a segunda fase. Mas há mais, infelizmente. Esta primeira fase colocou o homem ao dispor da propaganda. Antes de poder passar para a segunda fase, ele vai encontrar-se num universo de propaganda. Ele vai ser formado, adaptado, integrado. É por isto que o desenvolvimento da cultura, na URSS, pôde ser feito sem perigo. Pode atingir-se um nível cultural mais alto sem deixar de ser um receptáculo da propaganda desde que se fosse um receptáculo da propaganda antes de adquirir faculdades críticas, e desde que essa mesma cultura esteja integrada no universo da propaganda. Na verdade, o resultado mais evidente da educação elementar nos séculos XIX e XX foi tornar o indivíduo susceptível à superpropaganda (1). Não há qualquer possibilidade de elevar o nível intelectual das populações ocidentais suficientemente e tão rapidamente de forma a permitir-lhes escapar ao processo de propaganda. As técnicas de propaganda avançaram muito mais rapidamente do que as capacidades de raciocínio do homem comum, de tal forma que diminuir essa distância e formar esse homem fora do mecanismo de propaganda é quase impossível. Na realidade, o que acontece e o que vemos em nossa volta é a reivindicação de que a própria propaganda é a nossa cultura e que as massas devem aprender. Apenas dentro e através da propaganda é que as massas têm acesso à economia, política, arte ou literatura. A educação elementar torna possível penetrar no reino da propaganda, dentro do qual as pessoas recebem depois a sua formação intelectual e cultural.
O homem inculto não pode ser atingido pela propaganda. A experiência e a investigação feita pelos alemães entre 1933 e 1938 mostrou que nas áreas remotas, onde as pessoas mal sabiam ler, a propaganda não tinha qualquer efeito. O mesmo é verdade para o enorme esforço feito pelo mundo comunista para ensinar as pessoas a ler. […]
Um dos métodos de propaganda mais eficazes na Ásia comunista foi estabelecer professores para ensinar a ler e doutrinar as pessoas ao mesmo tempo. O prestígio do intelectual – “marcado com o dedo de Deus” – permitiu que afirmações políticas aparecessem como verdades, enquanto o prestigio da palavra publicada, que se havia aprendido a decifrar, confirmava a validade do que os professores haviam dito. Estes factos não deixam margem para dúvidas de que o desenvolvimento de uma educação elementar é uma condição fundamental para a organização da propaganda, ainda que uma tal conclusão seja contrária a muitos preconceitos, melhor expressos pelas palavras pungentes mas totalmente irrealistas de Paul Rivet: “uma pessoa que não sabe ler um jornal não é livre”.
Esta necessidade de um certo nível cultural para tornar as pessoas susceptíveis à propaganda (2) é melhor entendida se olharmos para um dos instrumentos mais importantes da propaganda: a manipulação de símbolos. Quanto mais um indivíduo participa na sociedade de que faz parte, mais se agarrará a símbolos estereotipados que expressam conceitos colectivos sobre o passado e o futuro do seu grupo. Quanto mais estereótipos numa cultura, mais fácil formar a opinião pública, e quanto mais um indivíduo participa nessa cultura, mais susceptível se torna à manipulação desses símbolos. O número de campanhas de propaganda no Ocidente que primeiro conquistaram sectores cultos é impressionante. Isto não é apenas verdade para a propaganda doutrinaria, que é baseada em factos exactos e actua ao nível das pessoas mais desenvolvidas, que têm um sentido de valores e sabem um bom bocado sobre realidades políticas, como, por exemplo, a propaganda sobre a injustiça do capitalismo, as crises económicas ou o colonialismo; é normal que as pessoas com mais educação (os intelectuais) sejam os primeiros a ser atingidos por essa propaganda…tudo isto corre em sentido contrário às noções de que apenas o público engole a propaganda. Naturalmente, o homem educado não acredita na propaganda; está convencido que a propaganda não tem qualquer efeito sobre ele. Esta é, na verdade, uma das suas grandes fraquezas, e os propagandistas estão bem cientes de que para chegarem a alguém, devem primeiro convencê-lo de que a propaganda é ineficiente e pouco clara. Por estar convencido da sua própria superioridade, o intelectual é mais vulnerável do que qualquer outra pessoa a esta manobra…
(1)Porque considerava o jornal o principal instrumento de propaganda, Lenine insistiu na necessidade de ensinar as pessoas a ler. Foi o chamariz da Nova Política Económica. A escola tornou-se o sítio para preparar os alunos para receberem propaganda.
(2)Temos também de considerar o facto de numa sociedade em que a propaganda – seja directa ou indirecta, consciente ou inconsciente – absorve todos os meios de comunicação ou educação (como era em 1960 em praticamente todas as sociedades) a propaganda forma a cultura e é, em certo sentido, a própria cultura. Quando os filmes e as novelas, os jornais e a televisão são instrumentos de propaganda política em sentido restrito ou no sentido das relações humanas (propaganda social), a cultura está perfeitamente integrada na propaganda; em consequência, quanto mais culto um homem é, mais propagandizado está. Aqui podemos observar também a ilusão idealista daqueles que esperam que meios de comunicação social criem uma cultura de massas. Essa “cultura” é simplesmente uma forma de destruir a personalidade.
Jacques Ellul, Propaganda: The Formation of Men’s Attitudes, pgs 108-111, 1973