Month: Dezembro, 2007

Da religião demo-humanitarista

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(…) Mas é ali que a democracia moderna revela as suas pretensões ao estatuto de religião: não é já um modo de escolha dos governantes, ela tem um corpo doutrinário infalível e obrigatório, ela tem um catecismo: os direitos do homem, e fora dos direitos do homem não há salvação.

A democracia moderna detém outros elementos indispensáveis a qualquer religião.

Um paraíso: Os países democráticos liberais, com, de preferência, uma legislação anglo-saxónica.

Um purgatório: As ditaduras de esquerda.

Um inferno: As ditaduras ditas de direita.

Um clero regular: os pensadores encarregados de adaptar as teses marxistas às sociedades liberais.

Um clero secular: Os jornalistas encarregados de disseminar esta doutrina.

Cerimónias religiosas: As grandes emissões de televisão.

Um índex tácito que interdita que se tenha contacto com toda a obra cuja inspiração seja repreensível. Este índex é admiravelmente eficaz sob a forma de conspiração do silêncio mediático, mas é por vezes utilizado de maneira mais draconiana ainda: os livros julgados deficientes do ponto de vista da democracia são, não ainda queimados numa fogueira, mas já retirados das bibliotecas escolares, como aconteceu em Saint-Ouen-L’Aumône.

Uma Inquisição: ninguém tem o direito de se exprimir se não está na linha recta da religião democrática e, se consegue ainda assim fazê-lo, paga as consequências: o linchamento democrático a que foi submetido em França um Régis Debray ( que ninguém suspeitaria de não ser democrata) porque colocou em causa a legitimidade dos crimes de guerra cometidos pela NATO em 1999 sobre o território da Jugoslávia é exemplar a este respeito.

Congregações de propagação da fé: Oficinas de desinformação, ditas de «comunicação» ou de «relações públicas».

Missi-dominici e bispos in partibus sob a cobertura, seja das diversas ONG, seja da ONU.

Os indultos, geralmente atribuídos a antigos comunistas.

Uma legislação penal e tribunais encarregados de punir quem quer que coloque em causa a versão oficial da História.

E mesmo tropas incumbidas de evangelizar os não-democratas «pelo ferro e pelo fogo»: vimo-lo bem desde que 19 nações democráticas se uniram para ir bombardear um pais soberano com o qual não estavam em guerra.

Hoje, uma frase como «em nome dos direitos humanos» utiliza-se quase como «em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo» se utilizou durante séculos. Reencontrámos, talvez, o sentimento do sagrado, mas não creio que seja um sagrado de boa cepa.

Vladimir Volkoff, in Pourquoi je suis moyennement démocrate, Éditions du Rocher

Quem é você, Pai Natal?

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Entro. Diante de mim, por detrás de uma mesa granizada, vetusta e oscilante, apresenta-se um pequeno velhote de barbas e bigodes brancos, quase calvo. Veste uma camisa aos quadrados e umas calças pretas com as pernas enfiadas num par de botas vermelhas. A sua face é rude, bronzeada, rosada, cheia de pequenas veias que se desenham a tinta vermelha sobre as maçãs do rosto e se vão perder sob os bigodes. Das suas grossas mãos calejadas solta uma montanha de cartas que lê, uma a uma, anotando-as a lápis azul.

-É com o Pai Natal que tenho a honra de falar?
-Sim. O que é que quer?
-Venho da parte da revista Lunático…
-Ah! É verdade! Lunático…

Parece completamente desnorteado. Vagueia com os olhos pela pequena sala:

-Bom, sente-se…Ou melhor, hã… tente encontrar um assento.

É que os assentos não abundam no escritório do Pai Natal. Há uma poltrona, mas só tem três pernas. Foi lançada contra a parede do fundo. Jaz, lá ao fundo, desamparada, em posição obliqua, como uma mulher que se entrega ou um navio que se afunda. Há também uma cadeira, mas suporta o dossier de uma pilha de documentos em equilíbrio instável…prefiro não lhe tocar.

-Este caixote, tome-o…Aproxime-o! Diz o Pai Natal. Aproximo, arrastando-o, o caixote que me indica, limpo-lhe a poeira…uma vez sentado, tiro do meu bolso o pequeno caderno e a esferográfica.
-Whisky? Pergunta o Pai Natal.
-Não, obrigado, não bebo. Mas você, se tem vontade…não se acanhe por mim.
-Palavra de honra que não, diz.

Serve-se um grande copo, do qual bebe um trago. Ataco-o imediatamente:

-Quem é você, Pai Natal?

Fita-me, os olhos redondos, o copo no ar:

-Quem sou eu?
-Bem, sim! Quem é você?
-Bom…sou o Pai Natal!

Raios! Vê-se bem que o Pai Natal não tem por hábito ser entrevistado! Explico-me:

-De novo? O que é que isso representa para si, ser o Pai Natal? Como é que isso o afecta?

Ele encolhe os ombros:

-Não sei…como é que queria que isso me afectasse?

Decididamente, o sujeito não é cooperante…resigno-me a sugerir-lhe:

-Enfim, deve ser maravilhoso, ser o Pai Natal! Todas essas cartas que recebe, toda essa alegria que distribui, todas essas criancinhas que acreditam em si, que o amam, o adoram…

O Pai Natal anui frouxamente:

-Sim, sim, certamente, é maravilhoso…as cartas, as criancinhas…evidentemente…mas de verdade, não quer um copo de whisky?
-não obrigado, não há maneira!
-Nesse caso, se o permite…

E enche um segundo copo. Pega-lhe, cheira-o, sorve metade, depois mete-se a abanar a cabeça, pensativo, o olhar vazio. Acho-o preocupado, desconfortável, um pouco triste. Tento fazê-lo falar:

-Certamente, tudo isso não deve ser tudo…você deve ter um trabalho extenuante.
-Oh sim!
-Toda essa correspondência em final de ano…o aprovisionamento, o transporte…a supressão das chaminés nos imóveis modernos…
-Oh sim!
Sem contar que a Administração Angelical não deve sempre facilitar-lhe o trabalho.
-Oh não!

Ah isto! Isto vai durar muito tempo? Ele imagina, talvez, que vou fazer assim as perguntas e as respostas até ao fim da entrevista? Oh, mas espera um pouco! Deixo-o encher, pela terceira vez, o seu copo, e, no preciso momento em que se prepara para beber, dou o grande golpe:

-E o menino Jesus?

Desta vez ganhei! Enrubesce bruscamente e responde-me com um ar glacial:

-Não tenho nada a ver com o senhor menino Jesus.
-Sem dúvida…
– O senhor menino Jesus faz o que quer no seu serviço e eu faço o que quero no meu. Não tenho de lhe prestar contas.
-É evidente!

A sua voz sobe de tom:

– Agora se veio até ao meu escritório para me falar do senhor menino Jesus, bom, lamento, mas não valia a pena incomodar-se! É ele que tem de visitar, não a mim! Ele não pede melhor! Recebê-lo-á de braços abertos! Eu, não tenho nada a dizer-lhe a si!

Mas, ele insulta-me!

– Então Pai Natal, não seja assim…foi por si que eu vim, só por si! A mim também me custa! Pensa que ignoro a campanha posta em marcha contra si pelo menino Jesus e as suas criaturas…pois justamente, venho oferecer-lhe uma oportunidade de se fazer ouvir, de colocar os pontos nos i’s. A revista Lunático coloca-se à sua disposição. Não pede mais que servir-lhe de tribuna!

Agora, o velho homem cala-se. Bebe, serve-se de um quarto whisky…depois reina um longo silêncio. Mas desta vez tenho confiança, sei que ele vai falar. Os seus olhos iluminam-se, a sua face aviva-se…o nariz baixo, como se se confessasse ao seu copo, deita-se a murmurar com uma voz surda:

-O menino Jesus! Peço-lhe um momento! Um grande sorna de trinta e três anos e alguns séculos…com aquela idade fazer-se chamar ainda menino Jesus! Que imaturidade!

Vaza o seu copo de um trago. Como vai voltar a enchê-lo sussurro timidamente:

– Bebe demasiado Pai Natal!
-E depois? O que lhe interessa? Eu não morro, esteja tranquilo!

Para me desafiar, sem dúvida, bebe mais um gole. Depois disso, limpa os bigodes e continua o seu discurso:

– Com certeza, você, você não faz ideia…Você não é mais que um terrestre, vê isto do ponto de vista do seu pequeno sistema solar…mas nós, aqui é a guerra! Ao menino Jesus os bons escritórios, as revistas sérias, os dossiers impecáveis, os secretários zelosos, as boas mercadorias! A mim relegam-me para aqui, neste pequeno pedaço miserável, nunca limpo, com uma velha máquina de escrever, no meio do nada…E não tenho para distribuir senão a mais medíocre quinquilharia! Todos os velhos artigos que os comerciantes já não querem: os objectos de plástico que se partem sozinhos, as bonecas de voz vomitada, os ursos de peluche úteis apenas para serem olhados, as ilustrações vulgares, as obras-primas clássicas em edições abreviadas, toda a pacotilha…se ao menos eu pudesse fazer o meu trabalho tranquilamente…mas não! Dificultam-me a vida, ainda, espiam-me, espiam-me. Metade dos meus anjos e a minha própria secretária, são agentes do menino Jesus. E sabe debaixo de que pretexto?

-Porque ele é Deus, sem dúvida?

Com o choque, o Pai Natal engasga-se. Esgana-se, sufoca:

– Ele é Deus? Bem, e eu? Não sou um deus, se calhar? Certamente que o sou, e desde há muito mais tempo que ele! Antes que o nosso céu fosse invadido por todos esses judeus…

Exclamo, horrorizado:

-Mas Pai Natal, o senhor é anti-semita!

Detém-se, com o ar francamente surpreendido:

– Mas o quê, eu sou anti-cristão! Você conhece muitos anti-cristãos sérios que não sejam anti-judaicos? Por acaso um cristão é outra coisa que um judeu herético? (recordamos, a propósito, que as opiniões expressas no Lunático apenas responsabilizam os autores).
-Dizia então, retoma o Pai Natal: antes do nosso céu ter sido invadido por todos esses judeus, eu era deus, também, era o deus do solstício de Inverno, e o 25 de Dezembro era já a minha festa, a festa da esperança…

A sua cólera findou. Levanta a cabeça, os seus olhos avermelham-se ligeiramente, a sua voz faz-se muito doce. Continua, num tom sonhador, melodioso, como se recitasse a tradução de um velho cântico:

-Você talvez não o saiba, mas eu sou o deus da esperança. Eu sou a semente sob a neve, o descanso invernal, o trabalho subterrâneo e paciente…presido aos silêncios fecundos, aos doces caprichos, às vocações teimosas, aos projectos diferidos, às realizações a largo prazo…sou o deus das grandes fidelidades, das frias obstinações e dos longos ressentimentos. Sou também o deus dos talentos contrariados, dos génios desconhecidos, das provações consentidas, valentemente suportadas, bravamente superadas…conhece, espero, a história de Cinderela, a do Patinho Feio? São velhos mitos, lendas minhas…

Insinuo perfidamente:

-mas nesse caso, é também o deus dos judeus!

Mas ele abstém-se de acusar a insolência. Responde-me com uma voz longínqua, enchendo o copo.

-Sou o deus de tudo o que se cala mas não renuncia.

Bela fórmula, palavra de honra! Tomo nota imediatamente.

-Mas diga-me Pai Natal, tudo isso que me diz não é muito infantil…os seus adversários poderiam responder-lhe que o mito do menino Jesus dirige-se muito mais directamente à infância…

O que é que eu fui dizer! Mudança à vista. O Pai Natal bufa, escuma, lança coriscos:

– Ah! Acha verdadeiramente! É infantil, não é assim, a história do menino Jesus! É idílica e terna! Esse reles fedelho menino-do-papá que se esconde no Egipto debaixo das saias da mãe enquanto todos os recém-nascidos da sua raça se fazem exterminar por ele! Ah, ele deve amá-las, às crianças, por conta disso! Deve-lhes bem isso! E se tivesse mudado depois, ainda… mas não! É sempre assim, monstruosamente egoísta! Veja, durante a última guerra, quando os aviões bombardeavam uma cidade, sabe onde caíam as bombas?
-Bom…um pouco por todo o lado, suponho…
-Não, justamente! Não era por todo o lado! Nunca sobre as igrejas! E sabe porquê?
-Bom…não!
– Porque as Igrejas, veja, são as casas do senhor menino Jesus! E o senhor menino Jesus, como bom proprietário que é, considera muito os seus imóveis! Então, de todas as vezes que uma cidade ia ser bombardeada, não sabe o que ele fazia? Enviava os seus anjos para cima das Igrejas, para fazer desviar as bombas para o lado, sobre os bairros populosos, sobre a cabeças dos homens, das mulheres e das crianças, precisamente!…

O Pai Natal está descontrolado. Toma, gole sobre gole, diversos copos consecutivos. Perdi-lhes a conta. Começa a assustar-me:

-Garanto-lhe Pai Natal, não deveria beber assim tanto…
-Uma vez mais, o que é que teme? Que eu apanhe uma cirrose? Eu sou imortal!
-Como queira…mas diga-me, Pai Natal…
-O que é agora?
-Tudo isso é muito interessante, certamente…e peço-lhe que não entenda o que lhe vou dizer como uma crítica…mas vejo ainda uma objecção…
-Qual?
-E os homens das turfeiras?
-Quais homens das turfeiras?
-Não se faça de inocente, Pai Natal…sabe bem que se encontraram nas turfeiras da Dinamarca cadáveres humanos, perfeitamente conservados, restos de indivíduos em que uma parte, ao menos, foi cortada ritualmente, sacrificada ao deus do solstício de Inverno…isto é, a si Pai Natal!

Espero vê-lo explodir de novo, mas não! Em alta dose o álcool acalma-o, parece. Com os olhos no vazio, responde-me muito pausadamente:

-Sim, sim, recordo-me…Bah! E depois? Eu sou um deus, não é assim?…e nós, os deuses, ainda que o sejamos, começámos pelo sacrifício…o velho judeu como os outros; lembra-se de Isaac, da filha de Jefté…o menino Jesus, ele mesmo…
-Como assim, o menino Jesus?
-O Pai Natal começa a dormitar, a sua voz torna-se sonâmbula:
-Bem, sim, o menino Jesus…se a Redenção não é uma morte ritual, gostaria que me explicassem o que é…eu, ao menos, não exigi o sangue do meu próprio filho, e não o fiz torturar durante todo um dia com o único fim de me fazer fruir.

(mais uma vez, as opiniões do Pai Natal não responsabilizam de forma alguma a revista!)

Levanto-me, um pouco perturbado:

-Bem, Pai Natal, não tenho mais que lhe agradecer…todas as suas declarações serão publicadas, e não duvido que elas interessam fortemente aos nossos leitores. Não tem nada mais a dizer?

O pai Natal abre a boca, articula com dificuldade, com uma voz monocórdica e arrastada:

-Pode dizer que se o menino Jesus continua a fazer-me esta guerra imbecil, será tanto pior para ele… as crianças já não acreditam em mim, talvez…mas nele também não! E será bem feito para ele!

Com estas palavras desencantadas afoga o nariz na papelada e adormece imediatamente. Adeus, Pai Natal, e não beba tanto! Uma cirrose de que se morre já não é engraçado, mas uma cirrose da qual não se consegue sequer morrer, deve ser pior que tudo!

Pierre Gripari, Qui êtes-vous, Père Noël ?, in Je suis un rêve et autres contes exemplaires, Anthologie des nouvelles de Pierre Gripari, par Jean-Pierre Rudin (Ed. de Fallois/L’Age d’Homme).

Weltanschauung

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(…)Qualquer análise sem preconceitos da Antiguidade grega produz pudibundos estremecimentos de alarme entre os que escreveram a novela da História universal. O que sucede é que aos gregos foi atribuída a patente da invenção do sistema político vigente. Do que imperou em ambos os lados da Cortina de Ferro pois, ainda que pareça incrível, capitalistas e comunistas não se guerrearam pela democracia. Guerrearam-se para estabelecer qual dos lados era o mais democrata. No debate entre as superpotências do mundo bipolar do século XX tudo esteve em discussão. Menos uma coisa: a democracia. Foi permitido matar por qualquer outro tema: propriedade dos meios de produção, imperialismo económico ou imperialismo político, ditadura do proletariado ou ditadura do dinheiro, comité ou soviete. Mas pela democracia, não. A democracia esteve, e continua a estar, fora de discussão. A democracia herdámo-la dos gregos. A única coisa que ainda hoje é permitido discutir é se Platão foi – ou não – o primeiro comunista ou o primeiro teórico da oligarquia. A única coisa que , todavia, se discute raivosamente, é quem é o herdeiro mais directo. Dos gregos. Os pais da democracia. Pois claro…

Vejamos: de todos os gregos, não. Porque a novela – como todo o policial “comme il faut” exige gregos bons e gregos maus. Para usar os termos cunhados em 1939: gregos aliados e gregos do eixo. De um lado os democratas liberais e, do outro, os fascistas. Se Platão é o predecessor de Marx, então Licurgo tem que ser o percursor de Hobbes. Se Sólon é quase um George Washington, então Leónidas, com os seus trezentos espartanos, inevitavelmente tem de ser algo assim como…bom, eleja o leitor mesmo, com total liberdade, o personagem da sua preferência entre a populosa galeria de tiranos, ditadores, déspotas, opressores, repressores e personagens malditos que nos presenteia a História oficial.

Esta visão estereotipada, binária e maniqueísta da Grécia é o dogma vigente. É a história da boa e democrática Atenas contra a obscura e totalitária Esparta. É a história dos nobres, ponderados, tolerantes e pluralistas atenienses contra os rígidos, belicosos, fanáticos e autoritários espartanos. São os rapazes bons de Atenas contra os maus de Esparta.

Claramente, o dogma não pode deixar de despertar suspeitas. Tanta perfeição de um lado e tanta perversão do outro resulta duvidosa. É como se o argumentista desconhecesse as suas próprias regras, quanto aos bons não poderem ser totalmente bons nem os maus completamente maus. Naturalmente, tratando-se de algo tão importante como a nossa instrução cívica, certa liberdade poética é admissível. Mas, ainda assim, a história tresanda a manipulação. Sobretudo quando se descobre que grandes luminárias de Atenas – nada menos que Sócrates e Platão – tinham um sólido respeito pelos espartanos e pelo seu estilo de vida. Mas claro, para percebê-lo é preciso ler Platão. E quem se vai pôr a ler Platão hoje em dia?!

Todavia, se pegamos nos próprios autores gregos, muito rapidamente se descobre a terrível e monstruosa verdade: os gregos não foram “democratas”, de todo! Para Aristóteles, a democracia é uma perversão da politeia – assim como a tirania é uma perversão da monarquia –, e vale a tendenciosidade inacreditável dos tradutores para tergiversar os termos. Para Platão a democracia é simplesmente uma notável estupidez política já que, segundo ele, o Governo deve estar nas mãos de uma minoria sábia. Em Atenas havia mais escravos e cidadãos de segunda do que homens livres. Na realidade, toda a celebrada democracia ateniense não é senão um luxo político a que, em certas circunstâncias, se permitiu a aristocracia terrateniense e a burguesia comerciante.

Os espartanos simplesmente não tiveram a veleidade de dar-se a semelhantes luxos. Eram sóbrios. Enfrentavam as épocas de paz e prosperidade com o pessimismo natural do campesino que sabe que as boas colheitas não se dão todos os anos. Sabiam que é muito salutar ser previdente e medido nas pretensões. Por isso, quando tiveram que enfrentar épocas de angústia e perigo, simplesmente apertaram os cinturões e – sem mudar em nada a sua organização social – puseram-se a resistir. Estavam organizados para resistir. A Grécia não se teria aguentado se lhe tivessem falhado os espartanos. Quando Esparta deixou de resistir a Grécia esfumou-se, tornando-se macedónia primeiro e simples província romana depois.

Essa é a verdade. A crua verdade. Nada nesta vida nos é dado de um modo aproximadamente duradoiro se não lutamos por defendê-lo. E para lutar com alguma probabilidade de êxito há que estar organizado para combater. De outro modo, ao primeiro embate do inimigo produz-se uma debandada. E há sempre um inimigo. Sobretudo em política. É assim e sempre foi, ainda que hoje muitos pretendam negá-lo. Ainda que actualmente tenha surgido uma certa praga de indivíduos defendendo que, para não ter inimigos é suficiente declarar a sincera intenção de não os querer ter. É ridículo. Mais de dez mil anos de História contradizem esta fantasia. É como pretender acabar com os ladrões declarando a nossa mais honesta intenção de não resistir a um assalto.

Os espartanos não toleravam ser assaltados e organizaram-se para resistir. Tinham orgulho e determinação. Tinham sobriedade e disciplina. Tiveram grandes defeitos, é certo. Mas também tiveram grandes heróis. Plutarco disse deles que se cultivavam sistematicamente no exercício de quatro virtudes fundamentais. Primeiro: não queriam nem podiam suportar a ideia de um individualismo egocêntrico, contrário ao espírito da sua comunidade. Segundo: cada um deles sentia-se conscientemente parte orgânica da sociedade e, por isso, todos se mantinham firmemente unidos por detrás dos chefes. Terceiro: esforçavam-se por vencer o seu egoísmo mediante a exaltação do heróico e a moderação nas pretensões pessoais. E quarto: concebiam as suas vidas como um acto de serviço realizado em benefício dos demais.

Solidariedade, lealdade, disciplina, autocontrolo, heroicidade, vocação de serviço. São as virtudes duras de homens duros que levam a vida a sério. Alguns dizem que foram excessivamente duros e que, ainda assim, estiveram longe de ser perfeitos. Claro que não foram perfeitos. Estiveram tão longe da perfeição quanto qualquer ser humano pode estar. E quanto a terem sido duros: por acaso a vida é branda? A vida delapidada em idiotices pode chegar a ser fácil, mas uma vida vivida com intensidade e honradez é qualquer coisa menos um passeio no parque. Por acaso não é certo que resulta terrivelmente difícil viver a vida de tal modo que não tenhamos do que nos arrepender quando chega o momento de morrer?

Os espartanos acreditaram que sim, quiçá fizéssemos bem em crê-lo de novo também nós. E não há por que amargurar-se: os espartanos não foram menos felizes que nós.

Mais, tiveram algo que só muito poucos têm hoje em dia: tiveram do que se orgulhar.

Denes Martos, in Los Espartanos