Os saques da liberdade

by RNPD

Os EUA invadiram o Iraque alegando duas razões principais: que o regime de Saddam Hussein disporia de armas de destruição maciça e que teria ligações à Al-Qaeda. A utilização desses argumentos serviu para reforçar a superioridade moral americana face ao agredido, estratégia que desde sempre tem sido usada por esse país nas muitas guerras em que se tem visto envolvido e que permite que, em defesa dos seu interesses próprios, os EUA se projectem nessas guerras e perante os outros, na mais enjoativa hipocrisia, como campeões abnegados do «mundo livre».

Quase 4 anos depois da invasão do Iraque sob a capa da «guerra ao terrorismo» é hoje sabido que os argumentos usados para legitimar essa intervenção preventiva eram falsos, mais grave, existe a justificada suspeita de que esses argumentos foram premeditadamente manipulados por forma a fornecer à Administração Bush um móbil para uma invasão do Iraque que estava há muito delineada pelos arquitectos neoconservadores da política externa republicana.

Em 2000, o PNAC, principal instituto neoconservador do país, elaborou um trabalho de 90 páginas intitulado «Rebuilding America’s Defenses: Strategies, Forces, and Resources For A New Century»(1). Na elaboração desse documento participaram várias pessoas que viriam posteriormente a fazer parte da Administração Bush. O que ali se apresenta é uma estratégia para assegurar o controlo completo do planeta sob direcção americana, uma ordem global ditada pelos interesses dos EUA. Para isso aponta-se a necessidade de usar o poder militar em larga escala e em diversos pontos do globo e particularmente sobre regimes considerados hostis às conveniência norte-americanas, instalando nesse caso em sua substituição democracias aliadas (naturalmente que a urgência em democratizar os regimes considerados adversos está relacionada com o facto de a democracia ser particularmente permeável ao dinheiro e a influências externas). Dos países apresentados como hostis aos interesses económicos e políticos americanos surgem nesse documento com particular frequência os nomes do Iraque, do Irão e da Síria.

Já em 1998, numa carta dirigida ao presidente democrata Bill Clinton, 18 membros do PNAC, mais de metade dos quais judeus, apelavam à necessidade de intervir no Iraque, usando a mesmíssima alegação das armas de destruição maciça e reforçando a necessidade de defesa dos interesses geopolíticos dos EUA e de Israel e o controlo do mercado petrolífero:

«(…) Apelamos a que aproveite essa oportunidade [referindo-se ao State of the Union Address] e que apresente uma nova estratégia que assegure os interesses dos Estados Unidos e dos nossos amigos e aliados no mundo. Essa estratégia deve apontar, acima de tudo, para a eliminação do regime de Saddam Hussein. (…) Não é preciso acrescentar que se Saddam adquirir a capacidade de usar armas de destruição maciça, como quase de certeza conseguirá se continuarmos no caminho presente, a segurança das tropas americanas na região, dos nossos amigos e aliados como Israel e os Estados árabes moderados, e uma parte significativa da oferta de petróleo mundial ficará em risco. (…) No curto-prazo isto implica uma disponibilidade para empregar a força militar já que a diplomacia está claramente a falhar. No longo-prazo significa remover Saddam Hussein e o seu regime do poder. Isso precisa ser agora o objectivo da política externa americana.» (2)

É, pois, evidente que a guerra no Iraque estava há muito planeada e fazia parte de uma estratégia de hegemonia mundial.

Se, decorridos estes 4 anos, sabemos, porém, que o móbil das armas de destruição maciça não encontrou comprovação e que não foram igualmente provadas ligações do regime de Saddam à Al-Qaeda, não devemos contudo concluir que esta agressão não teve qualquer impacto na «guerra ao terrorismo» tomada de forma mais abrangente.

As agências de espionagem norte-americanas concluíram há pouco tempo que a guerra no Iraque se tornou um factor de disseminação global do terrorismo islâmico e aumentou o seu risco. (3)

Para além disto, um dos resultados da invasão do país de Saddam foi a ascensão do poderio regional do Irão, com tudo o que isso acarreta para o equilíbrio geoestratégico do mundo.

Curiosamente, essa intervenção militar acabou não só por fazer cumprir um dos principais objectivos dos subscritores do documento de 2000 do PNAC( e da carta de 1998) como criou ainda as conjunturas exactas que esse documento descrevia rumo à criação de um mundo sob hegemonia americana, desde o imperativo das intervenções militares em diversos pontos do globo, à confirmação e reforço dos nomes dos regimes hostis ao Novo Império como inclusive levou ao aumento do orçamento norte-americano para gastos militares, tal e qual como era sugerido necessário pelo PNAC.

Uma achega preciosa para compreender uma parte do que sempre esteve em causa em mais esta cruzada liberal foi muito recentemente divulgada. A 7 de Janeiro deste ano, o jornal britânico The Independent revelava que o novo governo do «Iraque livre» se preparava para entregar a companhias norte-americanas e britânicas a exploração das reservas petrolíferas do país, ao abrigo de acordos danosos dos interesses nacionais do povo iraquiano.(4) Aparentemente a lei que permitirá o saque foi mesmo elaborada pelos próprios EUA e entregará a exploração dos recursos do país às grandes companhias «ocidentais» durante um período de 30 anos, naquela que será a primeira operação de larga escala envolvendo interesses estrangeiros desde a nacionalização da indústria em 1972.

Os acordos permitirão aos invasores arrecadar 75%(!) dos lucros provenientes do sector numa primeira fase e 20% numa segunda fase, muito acima da média da indústria para estes negócios.

O artigo do jornal não deixa igualmente de relembrar as palavras de Dick Cheney( também ele membro do PNAC e que antes de ter ocupado a vice-presidência do governo norte-americano era um alto executivo da companhia petrolífera Halliburton) em 1999, a propósito da necessidade de aumentar a oferta de petróleo até 2010 – já depois, portanto, da carta entregue pelos neoconservadores ao presidente Clinton:

«Então de onde virá o petróleo?…O médio Oriente, com 2/3 das reservas mundiais e o mais baixo custo, é ainda onde está o prémio».

E aqui chegamos, ao Novo Século Americano, envolvidos, todos nós, nas guerras do «Ocidente», o bom «Ocidente», as guerras pela liberdade, pela democracia e pelos direitos humanos. Mas os EUA não se limitam a libertar os povos oprimidos, a levar-lhes a boa nova da liberdade e da democracia, libertam-nos também do peso dos seus recursos e da sua autonomia, mas sempre, a estratégia é essa desde a segunda guerra, apresentando estes saques como guerras da moralidade contra a imoralidade.

Mergulhado no mais completo caos, num clima de guerra civil latente, dezenas de milhares de mortos iraquianos depois – o The Lancet estima mesmo que poderão ser mais de meio milhão (5) – e prestes a perder o controlo dos seus recursos energéticos, o Iraque está hoje a caminho de fazer parte do «mundo livre». O ditador, pelo menos, já foi enforcado… A «liberdade americana» fala hebraico e paga-se em sangue e em petrodólares. Quem se segue? Afinal, o mundo é apenas uma grande aldeia à espera de ser salva.

(1) Rebuilding America’s Defenses

(2)Carta de 1998 do PNAC

(3)Spy Agencies Say Iraq War Worsens Terrorism Threat, The New York Times, 24 de Setembro de 2006

(4) Future of Iraq: The spoils of war, The Independent, 7 de Janeiro de 2007

(5)Estudo do The Lancet