Metropolis

by RNPD

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«Já terminei a minha obra. Criei uma máquina à imagem do homem que nunca se cansa nem comete erros. A partir de agora já não precisaremos de trabalhadores humanos. Não valeu a pena perder uma mão para poder criar os trabalhadores do futuro? A máquina humana! Dê-me outras 24 horas e entregar-lhe-ei uma máquina que ninguém será capaz de diferenciar de um ser humano» Rotwang a Fredersen

O argumento

No ano 2026, debaixo das opulências e aparências da cidade de Metropolis, os trabalhadores mecanizados, escravizados, sofrem os ritmos de desumanas decadências. Estes desafortunados desenvolvem o seu trabalho no interior da terra, a partir do décimo nível subterrâneo. Ali não chega nem o sol nem o ar puro, mas o seu esforço esgotante, obscuro e anónimo, garante o elevado nível de vida dos habitantes da superfície. Nas profundezas a máquina destruiu o humano. As máquinas dominam tudo e ocupam um lugar preponderante na sociedade. Não há humanidade nas profundezas, só escravidão e submetimento à tirania da máquina. Não existem emoções, nem tensão, nem criatividade, somente uma rotina esgotante, sem matizes, cinzenta, triste. O ser humano das profundezas é um ser abatido e esgotado. Pelo contrário, na superfície reina o luxo, o bem-estar e a opulência. Em edifícios altos e praças espaçosas vivem os privilegiados. A casta dos poderosos pode manter o seu nível de vida graças ao sacrifício dos escravos.

Esta cidade tem um dono todo-poderoso, Fredersen. Um homem duro, implacável. Frio e calculista. A sua tirania induz os trabalhadores a sublevar-se mas uma jovem, Maria, tenta tranquilizá-los e promete-lhes que um dia, não longínquo, reinará o amor. Mas não há nada a fazer, a capacidade de sacrifício dos trabalhadores chegou ao limite e só a revolta pode assegurar a libertação, ou a morte.

Freder, o filho de Fredersen, um dia, como o Buda ao sair do seu retiro ideal, desce aos subterrâneos, cuja existência ignorava, acompanhado por Maria, que havia encontrado. Maria desperta-lhe uma extraordinária paixão. A partir desse encontro Freder tentará libertar os escravos mas o seu pai não pode tolerar esta relação e por isso contrata Rotwang, um cientista enlouquecido que construirá um robô com os mesmos traços de Maria, para terminar a revolta e recuperar o seu filho.

O robô causará uma crise na cidade subterrânea, destruirá os ensinamentos de Maria e substitui-los-á por ideias de vingança, luta de classes, revolta e saque. O robô consegue propagar o ódio entre os trabalhadores, mas, por fim, Freder e Maria conseguem denunciar a fraude e o robô, que acabará destruído pelos trabalhadores. A revolta provoca a inundação da cidade e a catástrofe. Em face dos factos alguns trabalhadores escravos compreendem a situação: foram enganados pela falsa Maria, a “bruxa”, perseguem-na e detêm-na, queimam-na, e é justamente nesse momento que entendem o que ocorreu: o revestimento do robô arde e deixa em evidencia o aspecto interior, metálico e frio, da falsa Maria. Nesse momento Rotwang sente-se perdido, sabe que quando os trabalhadores lhe atribuírem a ele a autoria do robô o perseguirão. A sua única possibilidade de sobreviver é guardar um ás na manga. Assim, decide sequestrar a verdadeira Maria, mas esta acaba libertada por Freder.

Freder luta contra Rotwang, que morre ao cair do campanário da catedral. O amor triunfa sobre a mecânica, o coração impõe-se ao artificioso. O filho do proprietário e a pobre trabalhadora fazem triunfar o seu amor por cima da sua origem social. Inclusive, à vista dos factos consumados, o próprio Fredersen aceita a nova situação, resignado. Maria pode predicar de novo a mensagem de paz e diz: «Não pode haver entendimento entre as mãos e o cérebro se o coração não actua como mediador».

Enquanto isso, à superfície, Fredersen é informado do que está a ocorrer nas profundezas e decide descer e visitá-las. Quando encontra o seu filho aceita a mão que este lhe estende. As classes antagónicas reconciliam-se com este gesto simples.

Metropolis e o expressionismo

Metropolis é uma obra tardia em relação às grandes obras expressionistas. É expressionista mas também é algo mais. Contém elementos novos, desconhecidos até esse momento. O ambiente arquitectónico da cidade não é tão angustiante e torturante como o de “Das Cabinet des Dr. Caligari” e muito menos, desde logo, do que em “Der Golem”. Mas, em qualquer caso, a película foi rodada segundo critérios expressionistas aos quais se somou o particular empenho de Lang e a predisposição da sua equipa para a realização de efeitos especiais que foram empregados, pela primeira vez, de forma sistemática no cinema. De entre todos os personagens Rotwang, o cientista enlouquecido, é, sem dúvida, o personagem mais expressionista do filme.

Trata-se de uma película maniqueísta, como todo o cinema expressionista. A dualidade entre o mundo das profundezas e o mundo da superfície, entre amos e escravos, entre bem e mal, é perfeitamente reflectida no seu conteúdo ético pelos claros-escuros, os contrastes e a gama de cinzentos utilizados.
Eugen Schweffton, artífice da maioria destes truques, enamorado da art déco, chegou a modificar espelhos, retirando-lhes a camada de mercúrio, a situá-los frente ao cenário e filmar alguma cena com personagens reais e o cenário, formado por maquetas reduzidas, reflectido no que restava do mercúrio. Tratavam-se de truques simples mas não por isso menos imaginativos, especialmente naquela época. Metropolis, não o esqueçamos, foi filmado nos primórdios do cinema quando ainda estava muito longe de alcançar a sua plenitude.

Os cenários são espectaculares. Os edifícios altos, as fábricas sombrias, o imenso relógio que marca obsessivamente as horas, as grutas subterrâneas que transmitem directamente o desespero dos escravos do subsolo.
De qualquer forma, Metropolis é expressionista especialmente por 3 conteúdos: a situação angustiante que se percebe desde os primeiros fotogramas e que, longe de diminuir, vai aumentando em cada cena, a sobreactuação dos actores, própria do cinema mudo mas ressaltada pelo ambiente gerado pelo expressionismo, e, finalmente, pela essência do guião, onde o fantástico se une ao terrifico.

É possível, ademais, apreciar em boa parte do cinema expressionista uma crítica social, reflexo do afundamento moral da Alemanha weimariana. Esta crítica torna-se exasperada em Metropolis. Neste sentido a mensagem moral da película é muito mais directa do que a de “Das Cabinet des Dr. Caligari”, “Der Golem” ou “Nosferatu”. Trata-se de um filme em que fica clara a crítica aos mecanismos de produção, ao empobrecimento dos trabalhadores e ao enriquecimento sem limite dos privilegiados.

Metropolis e a mensagem da época

Trata-se de uma película pré-fascista? A Lang não lhe interessava a política. A sua amante e guionista, Thea von Harbou, foi militante nacional-socialista desde as primeiras horas. Assim há que considerar que Lang estava em certa medida influenciado pelas ideias da sua esposa. Sendo Thea militante do partido nacional-socialista há um fundo em Metropolis que está em sintonia com a ideologia hitleriana.

Contrariamente ao que se tem tendência a pensar, o hitlerismo realizou uma crítica implacável ao modo de produção capitalista, que conseguiu penetrar nas classes trabalhadoras alemãs. Sabe-se que as Secções de Assalto hitlerianas, eram chamadas “secções bistec”, vermelhas por dentro castanhas por fora. Estes agrupamentos activistas estavam formados por antigos soldados da frente e ex-militantes comunistas passados ao hitlerismo. Não foi raro que Hitler e os demais ideólogos do partido tivessem enfatizado a crítica ao capitalismo, sobretudo quando boa parte dos capitalistas do seu tempo, para cúmulo, eram judeus, a besta negra do nacional-socialismo.

Mas, diferentemente da crítica marxista, o nacional-socialismo, denunciando a exploração capitalista, não questiona a divisão de classes. Isso mesmo ocorre em Metropolis. A mensagem da película é que o “coração”, representado por Maria, deve mediar entre as “mãos dos explorados” e o “cérebro dos exploradores”. O “mediador” entre as classes é o elemento novo introduzido na película e desconsiderado pelo marxismo. Neste sentido Metropolis é um filme que, se não é fascista, é, desde logo, próximo do fascismo, mais do que de qualquer outra ideologia política. E assim o devem ter visto as hierarquias nacional-socialistas, ainda na oposição, quando, na possibilidade de aceder ao poder, ofereceram a Lang a direcção da UFA.

Mas há outro elemento simbólico não menosprezável. “Maria” tem um duplo rosto: por uma parte predica amor e compreensão entre as classes, e por outra parte é uma agitadora social, a “Maria robô”. Esta última é destruída e injuriada como uma amostra da perversão do seu criador, Rotwang. A “Maria robô” é filha dos privilegiados, isto é, dos capitalistas. E isto encaixa de uma maneira absolutamente exacta com a crítica nacional-socialista da produção capitalista. Os sectores mais simplistas do partido nazi defendiam que os agitadores comunistas e os capitalistas tinham uma mesma origem étnica: eram, simplesmente, judeus. Mas outros sectores do partido elaboraram doutrinas muito mais sofisticadas sobre a identidade marxismo-capitalismo. O próprio fundador da Falange Espanhola defendia que os excessos do capitalismo deram lugar ao marxismo, como sucessão dialéctica. Os nazis pensavam exactamente isso. Na parábola de Metropolis toda esta teoria acaba genialmente dramatizada na agitadora “Maria robô”, surgida do malévolo engenho de Rotwang.

Há algo de crítica à tecnologia (e, muito mais) à mecanização mas também um aceso elogio da máquina. A máquina deixa de ser benéfica para o ser humano quando, de um meio para alcançar um fim, o progresso, passa a ser um meio para escravizar. Se nos anos 20 houve um movimento estético-político que defendeu teses parecidas esse foi o futurismo que, pouco tempo depois de lançar o seu manifesto, convergiu com o fascismo.

Metropolis e Fritz Lang

Não foi uma fita fácil de realizar. Foi uma das primeiras superproduções da história do cinema: a filmagem durou quase um ano (entre 22 de Maio de 1925 e 30 de Outubro de 1926), participaram 36 000 extras, dos quais a 7000 rapou-se-lhes a cabeça para uma cena de apenas 7 segundos. O orçamento foi invulgar para a época (cinco milhões de marcos), a projecção prolongou-se durante 3 horas. A película estreou-se a 10 de Janeiro de 1927. O seu êxito foi moderado. Talvez a película fosse demasiado longa e densa para a época.

Não foi, desde logo, a fita que mais benefícios económicos proporcionou a Lang mas sim a fita que, por si mesma, colocou o seu director num lugar de eleição na história do cinema. Dado que Metropolis não foi um êxito económico Lang fundou a sua própria produtora, “Fritz Lang Gesselschaft”, rodando nos dois anos seguintes duas películas menores, “Spione”( Os Espiões) e “Frau mi Mond”( A Mulher na Lua). Ambas são facilmente acessíveis em formato DVD.

“Os Espiões” é um filme realizado com ideias já presentes na séries sobre o Doutor Mabuse. A variante é que surge o tema do amor entre o agente enviado para liquidar a organização e uma das suas pertencentes. Na “Mulher na Lua” Lang explora uma fusão entre o género negro e a ficção científica, a que se junta também uma história de amor entre astronautas perdidos na lua. Nesta fita Lang volta aos cenários grandiloquentes mas descuida o guião. O resultado é um filme incoerente e progressivamente aborrecido. No entanto, também passou à história por ter sido a última película muda de Lang.

Nos anos 90 Metropolis foi resgatado das cinematecas e restaurado. Giorgio Moroder realizou uma versão musical, com as imagens originais coloridas, que limitou a duração do filme a apenas 83 minutos. Versões posteriores em DVD regressaram à duração original e à montagem de Lang. Na realidade o intento de Moroder não era absurdo. Há algo em Metropolis que remete para a estética do videoclip tanto como para o estilo expressionista.

Este estilo chegou ao cinema moderno através de Metropolis e é facilmente reconhecível em outras fitas de ficção modernas como “Blade Runner”( de Ridley Scott) ou “2001, Odisseia no Espaço”( de kubrick). A cena da valsa na estação espacial evoca a visão de Metropolis sobrevoada por aviões, o ambiente sinistro das catacumbas onde vivem os subhumanos remete directamente para o ambiente angustiante e opressivo em que os robôs de “Blade Runner” vão sendo liquidados por Harrison Ford. O tema da máquina que toma consciência de si mesma e acaba dominando o seu criador apareceu em muitas fitas de ficção, desde “Matrix” à saga do “Exterminador”. Pela sua parte as três peças de “Mad Max”, especialmente a segunda, remetem directamente para a angústia expressionista. Não é por acaso que esta série foi filmada nos anos 80, quando se experimentava o terror de que a guerra-fria se convertesse em quente.

De facto, Metropolis é um produto de um tempo angustiante e que somente pode ser apreciado por quem experimentou uma angústia existencial absoluta.

Metropolis oitenta anos depois

Quem pretenda ver Metropolis com os olhos do século XXI sentir-se-á decepcionado e aborrecer-se-á tremendamente. Metropolis é uma película que figura por direito próprio na história do cinema mas não é uma película actual. O argumento é antiquado, os truques, inclusive os mais imaginativos, são infantis face aos desenvolvimentos dos modernos efeitos especiais. A linguagem narrativa é completamente diferente da utilizada hoje.

A película, apesar de ser muda, entende-se com facilidade, mas, em alguns momentos, resulta pueril. A mesma crítica ao processo de produção capitalista resulta infantil e hoje está ultrapassada. A mecanização não é o grande problema do mundo moderno; de facto, Metropolis antecipa-se à modernidade: o robô acabou por ser o rei das cadeias de produção e não o trabalhador alienado.

Talvez a estética de Metropolis seja o que melhor suportou o passar do tempo. O robô destila um singular aroma de modernidade e é, sem dúvida, o autómato mais imaginativo jamais realizado no cinema. Os que temos o poster da película num lugar destacado do nosso local de trabalho temos a imagem como uma das mais felizes da história do espectáculo.

Há que considerar esta fita como uma das que fizeram avançar um passo mais a indústria do cinema. Se a ficção científica tem um antes e um depois de “Blade Runner” e “2001” e o cinema bélico um antes e um depois de “O resgate do soldado Ryan”, Metropolis constituiu um passo me frente na experiência expressionista. É, desde logo, uma película de transição entre um cinema que dava os seus primeiros passos balbuciantes e o cinema como arte.

O expressionismo alemão situou-se nesse ponto de inflexão da história cinematográfica. Lang compreendeu-o. No fundo quis sempre fazer do cinema uma arte. Ao contrário de Howard Hawks, bom artesão, que jamais teve outra ambição do que fazer um cinema de entretenimento. Se com Lang o cinema é arte, com Hawks o cinema é indústria.

Ernesto Milà, 5 Directores de cine americano (II) Fritz Lang (2ªparte) Metrópolis