A “Vontade de Poder” na obra de Wagner

by RNPD

Evocar as palavras “Vontade de Poder” lembra imediatamente Friedrich Nietzsche, e contudo, quando me tocou encontrar na obra de Wagner as centelhas da Vontade de Poder devo dizer, antes de mais, que de modo algum Wagner tomou para si ou se sentiu influenciado pelas ideias nietzschianas sobre a Vontade de Poder. Mais, Wagner só sentiu sincero apreço pelo seu discípulo de então, Nietzsche, durante o curto tempo em que este estava ainda sob influência de Schopenhauer e trabalhou para sustentar a concepção da “Obra de Arte Total” wagneriana como continuação da essência da tragédia grega.

Assim, ao analisar na obra wagneriana a existência de uma concepção de Vontade de Poder “avant la letrre” há que entender que não é um reflexo do pensamento de Nietzche senão precisamente o seu antecessor artístico.
Wagner sentiu nas suas primeiras leituras e pensamentos a essência do “Homem Novo”, que não tem má consciência pois cria a sua própria norma com valor e decisão, sem se sujeitar ou aceitar as regras preestabelecidas. A leitura de Feuerbach e as suas próprias experiências revolucionárias, expressadas perfeitamente em “ Arte e Revolução”, são a fonte dessa concepção “optimista” e “dominadora” que foi mitigando sob a influência decisiva de Schopenhauer e do cristianismo.

Para Wagner a “inocência” primordial do Homem Novo assemelha-se bastante, mas sem alcançar a sua radicalidade, à que seria a concepção do “superhomem”, do herói sem vínculos, da Vontade de Poder pura de Nietzsche. Não só falaremos de Siegfried, protótipo absoluto desse sentimento, mas também de toda uma série de lampejos desse mesmo ideal inicial que, sem dúvida, havia atraído tremendamente o jovem Wagner. É indiscutivelmente na Tetralogia que Wagner nos desenha mais perfeitamente o sentimento e a essência do Homem Novo, do triunfo da Vontade de Poder, com o personagem extraordinário, nesse sentido nietzschiano, que é Siegfried.

O estado livre inicial

Também noutras obras há referências claras à Vontade de Poder e ao Herói livre de vínculos externos, incluindo a moral estabelecida, seguro de si mesmo, dono do seu destino. Mas em quase todas elas esse estado é apenas inicial, um instante antes do drama, da renúncia ou do sentimento de culpa, antes de descobrir que essa liberdade total da Vontade é uma ilusão. É como se Wagner quisesse ressaltar que tudo o que é importante, dramático e à vez profundamente humano, nasce da ruptura com essa “infância” feliz, desse estado inicial do Herói sem problemas nem má consciência, que de tão livre é antes “sobre-humano”, frio na sua falta de drama humano.

Tannhäuser ou Tristão tiveram um instante inicial em que foram heróis sem má consciência, riam e lutavam com o seu espírito livre, mas em ambos os casos este estado inicial de alegria na própria confiança é anterior ao drama, ali, quando Tannhäuser se bateu com os cavaleiros de Turingia e sem dúvidas nem medos foi em busca de Vénus. Mas a obra inicia-se quando já sentiu na alma o arrependimento e percebeu o seu erro, regressa fracassado da sua ruptura com tudo e não voltará mais a rir sem má consciência.

Tristão era um herói livre de toda a pena quando lutava contra Morold e conquistava terras para o seu rei Mark, mas acabará por ter de enfrentar o dilema do seu amor e da sua lealdade. Já ao início Isolda reconhece a “má consciência” em Tristão: “Do herói que lá, ao meu olhar oculta o seu, de vergonha, e baixa a vista temeroso”.

Parsifal também se inicia como herói livre de todo o vínculo, menino que ri e corre pelos bosques, com o seu arco e a sua consciência tranquila, mas prontamente “conhecerá” a compaixão e já não poderá mais rir sem pena ou dor na alma.

Na Cavalgada das Valquírias também se respira este estado livre de Vontade sem má consciência, mas é apenas um reflexo do seu estado primogénito. Logo as Valquírias estão imersas na sua própria decadência, a de Wotan. Desde a chegada de Brünhilde, acossada, todo o mundo inicial das Valquírias se desmorona, nunca mais cavalgarão rindo com a despreocupação do seu próprio poder, não poderão já esquecer a culpa de Wotan, obedecerão mas não rirão.

Mas podemos encontrarmo-nos com uma personagem que não conhecerá limite à sua Vontade de Poder: Walther dos Mestres Cantores. Walther não aceita desde o início nenhum entrave à sua Vontade de Cantar e de Amar. Trata de ser Mestre com a inocência daquele que está seguro de si mesmo, e perante os entraves nem se acobarda nem se submete, rompe desdenhosamente com eles. Veja-se o último verso do canto de Walther no final do 1º acto:” Que me importa que ao corvo não lhe agrade o inspirado canto do trovador!…adeus mestres pedantes”.

Tampouco a sua Vontade se detém face às barreiras ao seu amor por Eva, e não hesita em preparar a fuga conjunta. Em nenhum momento duvida do seu direito a Eva e da sua valia como cantor, nem sequer ao triunfar no concurso final mostra a sua aceitação às regras dos mestres. E quando Sachs recorda a Walther, no último verso da obra, que não deve desprezar os mestres pese os seus erros, Walther não responde e não há nada que nos indique que daí em diante aceitará submeter-se à tablatura e às suas regras.

A Tetralogia: caminho para entender a Vontade de Poder

Não é Siegfried o centro da tetralogia, na realidade o sentido de Siegfried é paralelo a outros temas centrais: o Ouro e sobretudo Wotan. O puramente humano está muito mais acertadamente reflectido no dilema de Wotan e na renuncia de Brünhilde, na maravilhosa tragédia do Ouro e do Amor. Siegfried está para além do humano, em todo o drama é um reflexo puro do sobre-humano. Na realidade Wotan é a antítese de Siegfried, a sua Vontade está repleta de “má consciência” e de renuncia, algo que o torna tremendamente humano e à vez completamente distante do modelo do herói sobre-humano. Com a tetralogia aparece o estilo do herói livre, dono de si mesmo, e com ele a música heróica que o acompanha, reflectindo perfeitamente a sua alma.

Podemos pressentir a Vontade de Poder, livre e forte, pela primeira vez com Siegmund, ao tomar Nothung e sentir a sua firmeza e força, a sua Vontade de Vida. Mas em Siegmund há um sentimento trágico, há algo ainda “humano”. Todavia a sua raça cumpre o desígnio de Nietzsche. Ouvi a Hunding no 1º acto d’A Valquíria:” Conheço uma raça selvagem para a qual não há nada sagrado, todos, e eu particularmente, a odiamos”.

Nada poderia definir melhor o conceito de “bom” em Nietzsche do que esta descrição:” No corpo dos bons o bem é hereditário. Os bons são uma casta, os maus uma massa semelhante ao polvo”(Humano, demasiado humano). Uma raça de heróis selvagens que não respeitam normas prévias, odiados pela massa vulgar. E para salientar a ruptura Wagner não hesita em expor Siegmund à acusação de incesto, inclusive explicitando-o claramente em várias partes do texto:” esposa e irmã és para teu irmão, surja, pois, de nós o sangue dos Welsa”. A ruptura da proibição moral secular reflecte de forma radical a nova escala de valores que enforma a raça dos Welsa. Como espelha a brilhante e apaixonada música com a qual Siegmund arrebata Nothung e expõe o seu vigor e futuro.

Será preciso esperar Siegfried, filho dessa raça, para alcançar o paroxismo do Novo Homem, o que não tem conflitos internos, não que não tenha medo, mas não tem dúvidas, nem sequer entende que se possa duvidar do seu direito e da sua Vontade. E a primeira aparição de Siegfried envolve-nos com a principal característica do Homem Novo, o riso e a jovialidade. Siegfried entra na caverna de Mime com um urso, subjugando-o e dominando-o, a sua entrada é selvagem e jovial. E o seu canto ao forjar Nothung reflecte essa jovialidade e esse riso primordial, duro e livre de remorso, que é a base da Vontade de Poder.” Forja martelo meu, uma firme espada. O rubro sangue cobriu outrora teu azulado aço: Como era frio o teu riso! …Centelhas de cólera me adornam, eu que subjuguei o teu orgulho”. Frente ao riso de Siegfried recordemos as palavras de Alberich a seu filho Hagen:”Hagen, filho meu, odeia a gente jovial… eu que sempre vivi renhido com a alegria”. A alegria de viver frente à má consciência.”Arrogância” será a acusação de Fafner ante a decisão de Siegfried.

Arrogância é a acusação do rebanho aos que se mostram superiores. Nem um só dos versos que cabem a Siegfried deixa de espelhar essa Vontade de Poder, essa jovialidade heróica e rebelde, livre de má consciência. Mas é sem dúvida no seu diálogo com “ O Viajante”, Wotan, no 3º acto de Siegfried, onde melhor se exprime essa essência do superhomem.

O Viajante: “Paciência rapaz. Já que te pareço velho deves ter-me respeito”.
Siegfried:” Em toda a minha vida sempre me surgiu um velho pelo meio. A esse de hoje, Mime, varri-o do caminho. Se continuas a opor-te com essa arrogância ao meu passo cuida para que não te suceda como a Mime”.

O homem novo não pode respeitar o velho nem o estabelecido, uma vez mais a ruptura é completa. Quando Siegfried quebra a lança de Wotan, o poder estabelecido, a força do passado, não sente sequer respeito:” Com a arma destroçada foge o cobarde”. Não há em Siegfried um pequeno sinal de respeito ou compaixão pelo vencido, porque não duvida nem um instante da razão da sua Vontade de Poder, não tem má consciência nem incertezas.

Os filtros de amor e a má consciência

Na obra de Wagner há dois grandes momentos em que se usa o recurso ao “Filtro de Amor”, a bebida mágica que faz enamorar aqueles que a bebem juntos. É curioso porque enquanto o tema do filtro dado por Brangânia a Tristão e Isolda representa sem dúvida um dos momentos altos da Tragédia e é perfeitamente conseguido, em O Crepúsculo dos Deuses o uso do filtro por parte de Gutrune para Siegfried é, quiçá, o aspecto menos conseguido de toda a obra Wagneriana.

Tristão e Isolda amam-se antes e sem necessidade alguma de filtro mágico e a “taça de reconciliação” que Isolda oferece a Tristão é inquestionavelmente um dos aspectos mais profundos da obra. Tristão e Isolda aceitam a morte como única saída para o seu amor impossível e ainda não explicitado. Ao aceitar morrer redimem a sua culpa e ficam livres para expressar o seu amor. Pagaram o preço disso. De alguma forma o filtro de amor não existe, é somente a libertação do silêncio, uma vez pago o preço: aceitar o drama e a morte.

“Livre do Mundo eu te possuo”, diz Tristão logo depois de beber o que crê ser veneno mortal. Sim, não é o filtro que dá o amor a Tristão, isso seria ridículo, o filtro só permite a liberdade para o expressar, pois crê haver pago o alto preço dessa liberação, renunciar ao mundo. Tudo o que se segue a esse instante até à morte final dos amantes é só um “intermédio”, um tempo adicionado, um instante conquistado à morte, uma vez esta aceite como preço inevitável. Não há nada de artificial nem há concessão à magia ou ao truque nesse uso do filtro como símbolo. O filtro não tem acção, é somente o símbolo da aceitação do preço trágico do seu amor.

Pelo contrário, no Crepúsculo o uso do filtro é absolutamente artificial, um truque teatral para justificar que Siegfried deixe Brünhilde por Gutrune, feito que não tem lógica alguma num pensamento “moral”, e que só pode ser aceite pelo espectador como produto de uma magia impossível. Mas o mais interessante é ver que ainda que Siegfried mude, esqueça e passe de Brünhilde a Gutrune num instante, fá-lo com a mesma simples e completa falta de má consciência, não tem um instante de dúvida nem de recordação, aborda o seu novo amor por Gutrune com a mesma paixão e decisão que antes havia demonstrado em relação a Brünhilde. Siegfried não tem nunca um momento de incerteza ou má consciência.

Nesse sentido Tristão é o oposto de Siegfried. Em Tristão o amor sabe-se culpado, a consciência pesada corrói o herói e só após pagar o custo mais elevado, a renúncia à vida, fica parcialmente libertado dos seus vínculos. Tristão está ligado às normas da Honra como Wotan está a Fricka. Se Siegfried tivesse estado no barco de Isolda, o seu comportamento teria sido radicalmente distinto, teria lutado contra todos os seus tripulantes, arrebatado Isolda e vencido em duelo o rei Mark, para reinar ele com a sua rainha Isolda. Siegfried não tem má consciência pois a sua honra está na sua Vontade de Poder, não conhece nem tem normas externas que lhe imponham obrigações, só a sua própria nobreza e vontade juvenil e imparável. Por isso, para fazer Siegfried “mudar ou renunciar” é impossível recorrer ao Dever, a uma obrigação ou necessidade moral ou de honra, a única saída é o grosseiro recurso ao filtro. Siegfried não deixaria Brünhilde nem pelos Deuses, nem por um Rei nem por um matrimónio ou compromisso prévio, nem por um parentesco próximo, nada lhe originaria uma má consciência ou uma obrigação de renúncia.

Assim, enquanto que no caso de Tristão o filtro é o símbolo de uma grande verdade essencial, a morte como renúncia total, a libertação que a renúncia concede ao homem face aos seus desejos e paixões, como renunciar à vida nos liberta das nossas misérias e nos dá a alegria de Amar e Ser de forma profunda; enquanto em Tristão o filtro é um reflexo de Schopenhauer e da sua filosofia de renúncia a desejos para alcançar a verdadeira liberdade, em Siegfried o filtro é um mero truque sem lógica, quiçá uma expressão, inadvertida, de que somente mediante o engano é possível subjugar o Homem Novo, dono de si mesmo e da sua própria norma.

Wagner: Uma Vontade de Poder ao serviço da comunidade

Em Nietzsche tudo é extremo. É um pensador violento para tomar em pequenas doses. O seu consumo em estado puro é perigoso. Foi, contudo, o descobridor de grandes segredos do homem, o investigador mais perspicaz da psicologia humana, o destruidor da filosofia racionalista e estéril que converte o homem numa mera máquina lógica e sem vida. A sua descrição do Novo Homem coincide perfeitamente com esse carácter primogénito do homem livre, selvagem e inocente, do menino grande que ri perante a vida e que se sente capaz de conquistá-la, que descreve sensivelmente, artisticamente, Wagner.

“A alegria brota de onde existe o sentimento de Poder. A felicidade consiste na consciência de Poder e da Vitória que se impôs. O progresso é o fortalecimento dos homens com grande capacidade de Vontade: o resto é erro e decadência”.
“Mais vida, mais autêntica, mais livre, mais alta e elevada, mais intensa, uma vida que requeira ousadia e aventura, risco e coragem”.
A Vontade de Poder, F. Nietzsche

Mas em Nietzsche a Vontade de Poder está ao serviço do indivíduo, do egoísmo, do eu.” Eu combato a ideia de que o egoísmo seja nocivo e prejudicial”( A Vontade de Poder).E o que é mais contrário a Wagner, essa Vontade de Poder está ao serviço dos fortes para desprezo dos débeis, sem distinção, sem compaixão pelos que são débeis sem culpa, os que sofrem a tragédia da vida, os que sofrem com a dureza impiedosa da Natureza.” Que os débeis e fracassados pereçam, primeiro princípio do nosso amor aos homens. E que se os ajude a morrer”. Desejando destruir os débeis culpáveis, os rancorosos da baixeza, os que querem entronizar a decadência para justificar a sua debilidade, reduz a força à brutalidade e falta de sensibilidade. Wagner destrói esta visão cruel da vida com a sua arte, aceitando a essência do Homem Novo, a Força e a Alegria, a ruptura com a moral estabelecida e a criação de valores novos, mas baseado na sensibilidade e na compaixão, no sacrifício e no amor. Sem Wagner a Vontade de Poder ficaria nas mãos dos heróis bárbaros, do individualismo das elites. A obra wagneriana soube abrir um caminho a essa Vontade de Poder, mantendo a sua essência e a sua força, nas mãos do herói compassivo, do que compreende o que o mesmo Wagner escreveu em Arte e Revolução:”A beleza e força como atributos da vida social não podem conseguir uma estabilidade auspiciosa senão quando estão ao serviço de todos”.

Ramón Bau