A estes que venderam a Pátria

by RNPD

“Eurico, o Presbítero”, de Alexandre Herculano, narra a história imortal do amor impossível de Eurico e Hermengarda e do início da reconquista da Ibéria ao invasor quando já pouca esperança restava, quando muitos haviam já vendido a pátria ao ocupante e se submetido à sua vontade, quando apenas uns poucos bravos continuavam a luta, liderados pela coragem inabalável de Eurico, o guerreiro misterioso do Chrysus, que abandonara o presbitério para acorrer ao derradeiro chamamento da nação. O excerto que se segue relata o último combate de Eurico, antes de cair para não mais se erguer:

«Era quase ao pôr-do-sol. Seguindo a corrente do Deva, a pouco mais de duas milhas das encostas do Auseba, dilatava-se nessa época denso bosque de carvalhos, no meio do qual se abria vasta clareira, onde sobre dois rochedos aprumados assentava um terceiro. Era, provavelmente, uma ara céltica. Em frente da tosca ponte de pedras brutas lançadas sobre o rio, uma senda estreita e tortuosa atravessava a selva e, passando pela clareira, continuava por meio dos outeiros vizinhos, dirigindo-se, nas suas mil voltas, para as bandas da Galécia. Quatro cavaleiros, a pé e em fio, caminhavam por aquele apertado carreiro. Pelos traios e armas, conhecia-se que eram três cristãos e um sarraceno. Chegados à clareira, este parou de repente e, voltando-se com aspecto carregado para um dos três, disse-lhe:

– Nazareno, ofereceste-nos a salvação, se te seguíssemos: fiamo-nos em ti, porque não precisavas de trair-nos. Estávamos nas mãos dos soldados de Pelágio, e foi a um aceno teu que eles cessaram de perseguir-nos. Porém o silêncio tenaz que tens guardado gera em mim graves suspeitas. Quem és tu? Cumpre que sejas sincero, como nós. Sabes que tens diante de ti Muguite, o amir da cavalaria árabe, Juliano, o conde de Septum, e Opas, o bispo de Ríspalis.

– Sabia-o – respondeu o cavaleiro: – por isso vos trouxe aqui. Queres saber quem sou? Um soldado e um sacerdote de Cristo!

– Aqui!?… – Atalhou o amir, levando a mão ao punho da espada e lançando os olhos em roda. – Para que fim?

– A ti, que não eras nosso irmão pelo berço; que tens combatido lealmente connosco, inimigos da tua fé; a ti, que nos oprimes, porque nos venceste com esforço e à luz do dia, foi para te ensinar um caminho que te conduza em salvo às tendas dos teus soldados. É por ali!… A estes, que venderam a terra da pátria, que cuspiram no altar do seu Deus, sem ousarem francamente renegá-lo, que ganharam nas trevas a vitória maldita da sua perfídia, é para lhes ensinar o caminho do inferno… Ide, miseráveis, segui-o!

E quase a um tempo dois pesados golpes de franquisque assinalaram profundamente os elmos de Opas e Juliano. No mesmo momento mais três reluziram.

Um contra três! – Era um combate calado e temeroso. O cavaleiro da cruz parecia desprezar Muguite: os seus golpes retiniam só nas armaduras dos dois godos. Primeiro o velho Opas, depois Juliano caíram.»

Leitura altamente recomendada, sobretudo nos tempos que correm.